Tudo
começa em 1986, na Rádio Clube da Parede. Até há muito pouco tempo era a única
pivô portuguesa que tinha apresentado a informação nos três canais
generalistas, em prime time. Quatro vezes eleita a melhor jornalista, na
última década, estreia em televisão em 1991. Na SIC desde 2000, Clara de Sousa.
Ana Rocha: Vê-se a si mesma como uma mulher
poderosa?
Clara de Sousa: Nem sempre. Nem sempre. Há dias que sim,
tenho que admitir que sim. Sobretudo quando me consigo ultrapassar a cada
momento, quando ultrapasso todas as minhas angústias momentâneas e, no fim,
resulta: faço aquilo que quero, com o grau de exigência que habitualmente
imponho, sim. Sinto que nesse momento tive o poder de transformar, de fazer
aquilo que inicialmente duvidava que conseguisse fazer. Nesse aspecto todas nós
somos poderosas num ou vários momentos das nossas vidas.
A.R.: Como mulher ou como profissional?
C.S.: A profissional não se separa da mulher. Eu sou mulher, sou
profissional, sou mãe, sou… Sou tanta coisa! Sou filha. Sou neta. Acho que essa
questão se coloca em todas as facetas da minha vida e é um bocadinho inato. Apesar
de, às vezes, ter alguma dúvida sobre o passo que devo dar, acabo sempre por
dá-lo porque acabo sempre por incutir em mim a confiança de que vou conseguir
superá-lo. Nesse aspecto, esse poder que temos de tomar a decisão de avançar,
sem medos, é bom, claro que sim, é isso que faz a diferença e eu acho que é
isso que acabou por me trazer até aqui. Com todas as conquistas que eu fui
conseguindo, com um esforço brutal, com imenso trabalho. Imenso trabalho. Nada
caiu do céu. A única oportunidade que caiu do céu foi a de sair da Rádio e de
poder fazer Televisão, sem nunca a ter procurado. Depois de lá estar nunca parei,
ao ponto da quase exaustão. Eu durmo muito pouco. Dizem-me que eu estou tão
focada a trabalhar que só percebo que estou há demasiado tempo quando o Sol
começa a nascer. Essa parte é um bocadinho desregrada. As 24h do dia não me
chegam para tudo o que quero fazer. Sou muito ansiosa em relação a despachar
trabalho para depois, quando quiser respirar, quando quiser tirar uns dias para
relaxar, não estar preocupada com o trabalho. Só que, às vezes, exagero. Exagero
bastante. Como passo bastante tempo sozinha entretenho-me com várias coisas:
com os meus pensamentos, os meus gatos, a cozinha, os meus livros, as séries
que gosto de ver. Perco, de facto, a noção do tempo. Tenho colegas que me dizem,
“tens tantos anos disto, como é possível ainda stressares com uma situação
dessas?” Uma conferência, uma moderação de um debate, eu só consigo estar
tranquila se souber que estou inteiramente preparada. Não consigo ter 90% de
inspiração e 10% de transpiração. Tem que ser ao contrário. É essa preparação
que acaba por me dar, de facto, a confiança para fazer as coisas bem feitas.
Não quer dizer que não as pudesse fazer bem, mas poderia ser também um golpe de
sorte. O improviso é muito engraçado mas quando falta substância, densidade e profundidade
ao temas é o jornalista que tem que os dar. Eu começo a preparar as coisas com
bastante antecedência. Não sei trabalhar de outra maneira. Não sei trabalhar em
cima do joelho. A menos que seja absolutamente necessário. Uma entrevista de
meia hora é complicada de se fazer sem tempo de preparação. Diariamente, acabo
por gerir entrevistas de 10 a 15 minutos. Para uma entrevista que exija mais eu
gosto de ter tempo para me preparar porque acho que só assim é que eu consigo
fazer um bom trabalho.
"A única oportunidade que caiu do céu foi a de sair da Rádio e de
poder fazer Televisão,
sem nunca a ter procurado."
A.R.: Tem o jornalismo como missão?
C.S.: Tem dias que sim. Tem dias que é mesmo uma missão,
sobretudo nos momentos decisivos da nossa sociedade, do nosso mundo. O jornalismo
afigura-se como uma missão, mas eu não estou a dizer que sou eu a missionária.
Não é propriamente aquilo que aconteceu há várias centenas de anos. É uma
missão no sentido em que é muito nobre e é muito necessário. É cada vez mais
necessário. Apesar de grande parte da sociedade pensar que não, o jornalismo
tem que continuar a afirmar-se como algo de fundamental, como um dos pilares
fundamentais das democracias. Hoje o jornalismo enfrenta sérios desafios. Temos
que continuar a afirmar junto das pessoas a importância da independência, do
critério, do jornalismo e dos jornalistas. No caso da SIC – a estação em que
estou – a marca da independência é total e absoluta.
"Apesar de grande parte da sociedade pensar que não, o jornalismo
tem que continuar a afirmar-se como algo de fundamental, como um dos pilares
fundamentais das democracias."
A.R.: O público confunde a Clara de Sousa com a pivô? Falam
consigo como se a conhecessem porque a vêem todos os dias na televisão?
C.S.: Não é assim tão linear. Até começar a lançar os meus
livros de cozinha – o backstage – as pessoas passavam por mim e comentavam,
mas não se aproximavam. Acho que prevalecia aquela ideia do jornalista como
inatingível e sério. Tem vindo a mudar. Há algo na comunicação que
determina se o outro se sente suficientemente próximo para falar connosco
quando nos vê na rua. A Cristina Ferreira, o Manuel Luís Goucha ou a Júlia Pinheiro,
por exemplo, estabelecem isso naturalmente nos programas, porque falam
directamente ao espectador. No caso dos noticiários não é tanto assim. Desde
que eu comecei a publicar os meus livros e, agora, o site e os vídeos – Youtube
e Facebook –, isso já acontece com mais facilidade, porque essa faceta
acabou por diluir um bocadinho a outra da inatingibilidade, da distância a um
ponto em que as pessoas tinham receio de se aproximar. Isso é bom. Se as
pessoas vêm falar, é obvio que lhes dou um bocadinho de atenção. Acho que é o
mínimo. As pessoas vêem-nos e nós não vemos as pessoas. O mínimo que se exige
de nós é que naqueles momentos possamos dar um pouco de atenção a essas pessoas
que já nos sentem como pessoas de casa. Nós entramos na casa delas todos os
dias.
A.R.: O facto de ser pivô obriga-a a ter uma ética redobrada?
C.S.: Eu não penso muito sobre isso. Tem apenas que ver com
educação. Tem que ver com valores. Tem que ver bom-senso. Essas coisas
ensinam-se em casa. Não são coisas que metodicamente se calculam. Se é por
calculismo, não é verdadeiro. Para ser verdadeiro tem que estar na nossa carne,
nos nossos ossos. Tem que sair naturalmente. Felizmente tive pais que me
ensinaram muito bem, a esse nível, e eu tenho aquela máxima de ter com os
outros o cuidado que eu gostaria que tivessem comigo. Tento sempre manter
esse equilíbrio. Há dias em que posso estar um bocadinho mais rabugenta. Há
dias em que eu até posso andar de olhos no chão – não ver nada. Há dias em que
eu até posso me aperceber de que alguém está a olhar para mim e, se olhar para
a pessoa, é um convite a vir falar comigo. Acontece várias vezes. O carinho com
que as pessoas falam leva-me a reagir com elas como se as conhecesse também. As
pessoas vêm de coração tão aberto, com palavras tão queridas e com um sorriso e
olhar tão brilhante que me contaminam. É algo que me sai naturalmente, mesmo
com aqueles que eu não conheço. É ser educada e é recebê-las bem.
A.R.: Há pouco dizia-me que se considera uma mulher poderosa. O
que fez para ter poder?
C.S.: Eu não disse propriamente essa história de ser poderosa. O
que me perguntou foi se eu sentia que havia momentos em que eu me sentia
poderosa. Eu dei exemplos de momentos em que me sentia poderosa. Ok. Isso
parece assim um bocadinho… Estar a pôr-me em bicos de pés – não é nada disso.
Agora, eu tenho um poder natural no desempenho da minha profissão. Sem dúvida.
A.R.: Tem um poder discursivo?
C.S.: Tenho um poder discursivo, comunicacional, sim, tenho
um poder natural de chegar a mais de um milhão de pessoas todos os dias. O que
é que eu faço com esse poder? Coloco-o ao serviço do jornalismo, obviamente.
Esse poder acaba, também, por se manifestar porque as pessoas já me conhecem. Inclusive
naquela parte mais pessoal. Eu não posso defraudar e é uma responsabilidade
acrescida para mim. Quando eu me lancei nesta questão da cozinha havia
pessoas que diziam, “mandou fazer a alguém os livros e ela não fez nada.”
Que loucura! Quer dizer, eu, sou jornalista. A verdade está sempre presente no
meu trabalho. Seria ridículo eu mentir sobre a minha faceta pessoal. Isso nunca
me passaria pela cabeça.
"Tenho um poder discursivo, comunicacional, sim, tenho
um poder natural de chegar a mais de um milhão de pessoas todos os dias. O que
é que eu faço com esse poder?
Coloco-o ao serviço do jornalismo, obviamente."
A.R.: Naquele lugar não está como a jornalista Clara de Sousa.
C.S.: A confiança que eu, enquanto jornalista, conquisto acaba
por se transportar naturalmente para o resto que eu faço. É uma
responsabilidade acrescida porque não é uma questão de poder fazer qualquer
coisa. Para mim é uma responsabilidade sobre a confiança que as pessoas têm
em seguir as minhas sugestões e em confirmarem que sai, de facto, muito bem. Para
mim, é maravilhoso. O carinho das pessoas é maravilhoso. Poder ajudar a
transformar, a criar momentos, também é poder. Um poder para um bem. Não é usar
o poder para o mal.
A.R.: O facto de ter criado site e conta no Youtube foi
uma forma de gerir esse poder?
C.S.: Não, não foi. De maneira nenhuma. Eu não penso assim. Veja,
eu não penso como você está a pensar. Eu não sei se a nova geração pensa assim.
Eu não penso assim. Não sou mecânica. Não começo a fazer contas de cabeça. Comecei
esta história da Cozinha e Bricolage porque o Paulo Varanda – e os meus colegas,
aqui –, a quem eu trazia sempre comida, me começou a desafiar. Quando fui à Conceição
Lino as pessoas replicaram e foi um imenso sucesso. Porque não? Vou fazer.
Está comigo desde criança. É uma parte de mim. Complementa-me, eu gosto de
fazer e está presente todos os dias, todos os dias, na minha vida. Ainda hoje,
antes de sair de casa, fiz três receitas, três. Um pão, um pudim e umas almôndegas,
porque me pediram, no outro dia, no site. Eu não penso nisso. As coisas
acontecem naturalmente. Eu pensei, sim, de outra maneira. Será que vai
afectar a minha credibilidade junto das pessoas? Por eu gostar tanto de estar
na cozinha, de estar agarrada aos tachos, de estar agarrada aos ingredientes, a
meter a mão na massa? Será que isso vai afectar a minha credibilidade enquanto
jornalista? Isso sim. Isso podia me ter impedido de avançar. Pensei que eu estou
a ser verdadeira, não estou a criar uma persona diferente daquilo que eu
sou de verdade e as pessoas são suficientemente inteligentes para pensar e para
perceber que uma coisa é a minha profissão e outra coisa é o que eu, Clara,
gosto de fazer além do jornalismo. Tem que ficar muito claro que a minha
profissão é esta e o resto são hobbies, que eu levo muito a sério. Não
são hobbies ligeiros. São muito sérios para mim. Se perceberem que são
verdadeiros e que eu os faço – um e outro – com o mesmo empenho, eu acho que as
pessoas vão perceber que é um processo natural. Nunca pensei. Nunca fiz contas
de matemática e de cabeça em termos de estratégia futura. Eu não penso muito no
futuro. Eu penso no presente. Logo à noite, vou estar a pensar no que fazer
amanhã. Não penso no que acontece daqui a 10 anos. Nunca fui assim. Nunca fui
assim.
A.R.: No início de carreira?
C.S.: Nunca fui assim. Nunca. Nunca. Sempre fiquei a trabalhar
no dia-a-dia e a pensar no dia de amanhã. Eventualmente, em alguma coisa por
uma ou duas semanas, ou em férias. Aliás, sempre que penso em férias é Maio ou
Junho. Já quando é tudo mais caro. É sempre assim. É no dia-a-dia que eu vou
gerindo as coisas. Vivo o dia. Sem pensar muito no futuro, sem pensar muito que
o tempo passa, sem pensar muito em quando é que isto acaba… Eu acho que isso
faz parte de mim.
A.R.: Não pensa em como será envelhecer na televisão?
C.S.: Não. Eu estou a envelhecer na televisão. Acha que vou
envelhecer menos se pensar mais sobre isso? Não, porque é que eu hei-de
estar a pensar? A pensar porquê? Porque é que me está a perguntar isso? Por ser
mulher? Porque vou ficar horrível, cheia de rugas? Eu acho que mesmo quando
ficar mais velha, e cheia de rugas, não vou ficar horrível. Acho que vou ficar
horrível é, se calhar, se começar a esticar. Eu não penso nisso.
A.R.: A televisão é mais dura para as mulheres do que para os
homens?
C.S.: Não é mais dura. A televisão, para quem pensa muito
sobre isso e torna isso um problema, consegue ser mais dura. Sem dúvida. Há
algo que vem de dentro. Há sempre uma energia que vem de dentro. Há uma luz que
vem de dentro, que carrega ou mais ou menos nas rugas. Eu estou muito bem
com as minhas rugas. Tenho 52 anos. Nunca pensei em esticar a minha cara e acho
que dificilmente pensarei nisso. Sempre me fez um bocadinho de impressão. Eu
acho uma mulher sempre muito mais bonita e mais verdadeira quando não está
esticada. E tenho um medo terrível. Penso, “porque é que as pessoas que
estavam bem se foram meter nesse processo?” Há muito mais numa mulher do
que ser bonita e jovem para sempre. Isso é ridículo. Ninguém é jovem para
sempre. Sabe quem é jovem para sempre? A Marylin, que morreu aos 36. Essa
ficou jovem para sempre. Se estamos vivos as coisas acontecem. Eu, acima de
tudo, estou preocupada em manter as minhas funções cerebrais, um raciocínio
rápido e em continuar a fazer bem o meu trabalho, porque a comunicação é um
todo: é a nossa voz, é a nossa expressão corporal e, obviamente, algum cuidado.
Temos que estar com uma imagem cuidada mas nenhum lugar diz que temos que estar
sem rugas. As rugas são anos. Anos são experiência.
"Há muito mais numa mulher do
que ser bonita e jovem para sempre. Isso é ridículo."
A.R.: Há pouco perguntava-me se a pergunta lhe tinha sido colocada
por ser mulher. Acha que a disputa entre mulheres é mais renhida?
C.S.: No meu caso não. Eu não tenho disputa com nenhuma
mulher. Nunca passei por essa situação. Sabe, fala-se muito, “quando se
chega a este nível…” Eu sei que sou um caso à parte, eu sei – é verdade –, mas,
quando comecei a fazer o meu trabalho, nunca andei em guerras internas, nas
redacções, a maltratar, a pisar, a ultrapassar para conseguir chegar aqui ou
ali. Sempre estive no meu canto, com as minhas armas principais, que eram a
minha dedicação e o meu trabalho. Depois, obviamente, a minha capacidade
comunicacional, que se podia distinguir de outras pessoas. Tem sido sempre
assim. Eu nunca me impus para avançar. Sempre fiz, nos sítios onde estive, um
bom trabalho para que depois as minhas chefias, os meus directores, pudessem
dizer “vamos buscá-la para aqui.” Isso foi acontecendo. Eu nunca tive
guerras dessas. Sei que existem mas, oiça, é uma ilusão que sejam só entre
mulheres. É global. Não é só entre mulheres.
"Eu nunca tive
guerras dessas.
Sei que existem mas, oiça, é uma ilusão que sejam só entre
mulheres.
É global. Não é só entre mulheres."
A.R.: Isso deveria tranquilizar-nos ou preocupar-nos?
C.S.: Nem tranquilizar, nem preocupar, porque eu estou a relatar
a minha experiência pessoal. A minha experiência pessoal será certamente
diferente da sua experiência pessoal e de outras experiências pessoais,
portanto, eu não quero dizer que esta é a regra porque não é, de facto. Eu
nunca tive guerra nenhuma com ninguém dentro das redacções. TVI, RTP, SIC. Tenho
sido muito feliz com isso. Muito feliz com isso. De vez em quando dou aulas,
estou com jovens de faculdades, e há sempre aquela coisa da pressa de chegar.
Eu sei que tive muita sorte nesse aspecto – sorte aliada ao meu trabalho – mas
a pressa de chegar é má conselheira. Nesta profissão, os anos que temos de
estar a tropeçar, a cair, a levantar, a fazer bem, a fazer mal, até aprender,
até atingirmos um estado da arte, são muitos. Atingimos esse ponto de estado da
arte muitos anos depois. É aí que as pessoas têm mais peso profissional. É aí
que as pessoas se tornam – ou não – referências na sua área. O que é muito
difícil de conseguir aos 20 e poucos.
A.R.: Considera-se uma profissional de referência?
C.S.: Para muitas pessoas sou uma profissional de referência.
Sim. Se não o fosse, não estaria, neste momento, no Jornal Principal deste
canal, com o Rodrigo Guedes de Carvalho. Há uma geração que, neste momento, é a
referência dos seus canais, para as pessoas, e por isso é que estão nos Noticiários
Principais. Isso parece-me óbvio. Dizia, a pressa não é boa conselheira e eu
lembro sempre que, atenção, estar nesta profissão pelas razões certas não passa
por aparecer no ecrã. Pode acontecer ou pode não acontecer. Ser um bom
jornalista e estar no jornalismo porque o jornalismo é um pilar fundamental de
uma democracia que está cada vez mais ameaçada – é isto que querem ou querem simplesmente
ser conhecidos? Essa ponderação eu sei que, às vezes, é difícil, aos vinte e
poucos anos, mas peço que pensem sobre essa necessidade da construção do ser
enquanto homem, enquanto mulher, cidadão e jornalista.
"Estar nesta profissão pelas razões certas não passa
por aparecer no ecrã."
A.R.: O espaço mediático. O que é? Um lugar de combate ou um
espetáculo?
C.S.: Um lugar de combate ou de espetáculo? O combate é uma
expressão romântica. “Camarada, vamos para o combate.” Não, nada disso. O
jornalismo informa. O jornalismo informa, com independência e com uma análise
correcta dos factos. O que o jornalismo tenta é transmitir ao cidadão a
informação necessária para que ele possa fazer a sua análise de forma também
independente. O jornalismo não existe para manipular. O jornalismo existe
até para criar um sentido cívico maior em cada um de nós. Eu acho que uma
sociedade mais bem informada é uma sociedade muito mais protegida. Contra,
por exemplo, estes factores agora de populismo, manipulação e fake-news.
É esse o nosso combate. Não no dia-a-dia, nas notícias, mas subjacente ao
nosso trabalho de informação há uma espécie de combate por uma literacia. É
isso que é preciso, literacia mediática. Sobretudo para estas gerações mais
jovens. Começar por se perceber que nem tudo o que se vê é verdade e reconhecer
os mecanismos de que se dispõe para investigar o que é verdade e o que é
mentira. Queremos cidadãos informados. Fazemos esse esforço e as pessoas, do
outro lado, também deveriam fazer. No dia-a-dia estamos preocupados em
saber se o jornalista entrevistou a pessoa certa, se foi ao local para
conseguir fazer a reportagem e se a cábula para o pivô está bem escrita, a
ponto de o espectador – o que estudou na universidade, o professor
universitário, o analfabeto e o que tem a 4ª classe – conseguir entender a mensagem.
Espetáculo não é de certeza.
"Uma
sociedade mais bem informada é uma sociedade muito mais protegida."
A.R.: Então não falamos de um info-entretenimento?
C.S.: Não, isso é ridículo. O que é isso de info-entretenimento?
O noticiário, hoje em dia, de uma hora e meia, tem momentos de descompressão.
Não há informação cultural? Isso é info-entretenimento? Se quiserem chamar-lhe
assim, chamem. Eu prefiro chamar-lhe jornalismo. Não é Política, não é Economia,
é mais… Sociedade, Cultura. É mais leve, é aquele que fica no fecho do jornal
mas, para mim, não deixa de ser jornalismo porque se eu fizer as perguntas
certas eu estou a fazer uma entrevista jornalística. Eu acho sempre muito
importante aquele momento, no final do telejornal, para a descompressão, depois
de uma hora e meia. O filme que estreou, a programação do NOS Alive, do Rock
in Rio. Não gosto muito desses rótulos.
A.R.: Vivemos a era da informação ou da desinformação? As redes
sociais retiram poder aos jornais ou ajudam-nos a construir a história?
C.S.: Em parte, sim. Em parte, não. Digamos que a parte que sim
é potencialmente perigosa. Eles têm armas que são complicadas de gerir. Não
têm ética e são entidades sem identidade. Nós temos rosto. Nós temos marca.
É possível combater. É possível combatê-los. É possível combatê-los, ainda
há pouco eu disse, com a literacia mediática. É preciso desconstruir aquilo
em que as pessoas acreditam, às vezes lendo só um título, sem abrir esses posts
de desinformação e partilhando. As pessoas têm que perceber que estão a
colaborar com a desinformação ao partilhar sem critério. É bom que tenham
noção disso. É por isso que falo da literacia mediática. Desde pequeninos, desde
que começam a ter consciência cívica, os pais têm que conversar com os filhos,
saber sobre o que pesquisam na Internet, estimular a busca pelos sites
de referência. Público, Expresso, Observador. Os
pais têm que começar a oferecer aos filhos os mecanismos de que precisam para
se protegerem de notícias que encontram na Internet e que são falsas, manipuladoras,
populistas. Eu estou muito preocupada, não apenas enquanto jornalista,
enquanto cidadã, enquanto portuguesa. O fenómeno ainda é muito pequenino mas
olhamos para a Europa e vemos como os populismos estão a crescer. Eu fico muito
preocupada com o que vai acontecer em Portugal, nos próximos dez ou vinte anos. A
literacia mediática tem que avançar.
"Eu fico muito
preocupada com o que vai acontecer em Portugal,
nos próximos dez ou vinte anos."
A.R.: Então o jornalismo pode, efectivamente, ser um espaço de
combate.
C.S.: O combate é geral. Quando eu lhe disse, há pouco, que informar
bem é o nosso objectivo, subjacente está esse combate, sim, desde sempre, sendo
que agora é ainda mais importante. Como jornalistas também erramos, e é mais
simples pedir desculpa porque erramos, mas o nosso trabalho diário é não errar,
menos ainda transformar a notícia para a manipular. Isso não é, mesmo,
jornalismo. O nosso trabalho é informar bem as pessoas. Informar bem as
pessoas é apenas uma parte desse combate que é de todos – não é só dos
jornalistas, é de todos. É do Estado. É seu. É meu. Os tempos que aí vêm são
muito complicados.
A.R.: Para a democracia ou para os jornais democráticos?
C.S.: Um jornal desses não existe sem ser em democracia.
Portanto, tudo o que não seja em democracia é complicado.
A.R.: Neste momento, o que está a ameaçar os jornais?
C.S.: O digital, não neste momento, há muitos anos, e não só os
jornais. Os jornais, em papel, registam quedas brutais mas está a ameaçar as
próprias televisões, também. O que tem caído nos últimos anos, em termos de
audiência, tem sido bastante. Não tão acentuado como nos jornais, é verdade,
mas tem vindo a cair. Muitos jovens, hoje em dia, não ligam a televisão para
ver o noticiário. Já o disse há pouco. Não é como há uns anos. Eu lembro-me
de ser pequenina – mas mesmo muito pequenina, só havia o primeiro canal e a
televisão começava às cinco da tarde e terminava bem cedo – e, às oito da
noite, religiosamente, eu estava à mesa e estava tudo em silêncio a ouvir o
telejornal. A televisão era fascínio. Hoje é banal. Mas se os mais jovens
não estão em contacto directo com os jornalistas sérios, independentes, com
critério, com filtro, quem é que vai colocar o filtro? É muito complicado. Os
jornalistas de imprensa já não têm, hoje em dia, a vida que tinham há uns anos.
Há uns anos tinham que fazer as notícias para serem publicadas no fecho da
edição. Hoje têm o dia inteiro a trabalhar para alimentar o online. O
futuro dos jornais também está a passar por aí. Quer uma prova de que as
coisas funcionam? É só ver o exemplo do The New York Times. Há
exemplos, neste momento, nos Estados Unidos, de que os jornais estão a dar dinheiro
para pagar salários, para pagar todo o funcionamento e para marcar a diferença.
O The New York Times é um exemplo. Pago, com conteúdos pagos. Como?
Diferenciação. Conteúdos jornalísticos de qualidade que só se conseguem
encontrar naqueles conteúdos pagos. Porque é que uma pessoa vai pagar a um
jornal para ler um artigo a que consegue aceder gratuitamente noutro jornal da Internet?
Uma notícia da Lusa, alterada? Não faz sentido nenhum. Tem que haver uma
diferenciação de conteúdos. Isso obriga os jornais a investirem em trabalhos
de maior qualidade, de maior investigação, com melhores jornalistas, com maior
cuidado, para terem esses conteúdos diferenciados e para que o público decida
pagar para ter acesso aos conteúdos premium. É isso que o The New York Times está a fazer, com grande sucesso. Como vê, é possível. É possível a
adaptação aos novos tempos. Sabe que quando olhamos para a História – e é uma
coisa para a qual eu olho com algum fascínio – nós vemos sempre que o Homem
consegue encontrar caminhos. Na grande Revolução Industrial perderam-se milhões
de postos de trabalho em todo o mundo e, no entanto, as pessoas readaptaram-se
porque surgiram outros postos de trabalho, noutras áreas que foram geradas
precisamente pela Revolução Industrial. Neste momento estamos a viver uma Revolução
Tecnológica de uma dimensão muito, muito, muito maior. Vem aí a inteligência
artificial. Vai roubar milhões postos de trabalho. Mas certamente haverá
mecanismos para reenquadrar e encontrar novos postos de trabalho nessa nova
realidade. É assim que “o mundo pula e avança”. Acho que não devemos
entrar em pânico mas precisamos de desenvolver a consciência de que ninguém
fica bem quando fica parado durante muito tempo no mesmo sítio, sem evoluir na
forma de fazer e na forma de pensar.
"Precisamos de desenvolver a consciência de que ninguém
fica bem quando fica parado durante muito tempo no mesmo sítio, sem evoluir na
forma de fazer e na forma de pensar."
A.R.: A sociedade ainda se define pelo que diz a televisão? As
televisões ainda têm o poder de definir o que as pessoas pensam, o que as
pessoas compram e quais são os valores pelos quais se regem?
C.S.: Não sei, não sou psicóloga social. Acho que a televisão,
nesse aspecto, tem um poder forte junto de uma grande parte da população, sim. Acho
que a publicidade em televisão ainda funciona bem, apesar de tudo, se for bem
feita. Acho que os programas de televisão que servem para entreter as pessoas
ainda continuam a ter sucesso. Quem gosta, gosta. Se eu não gostar, não
vejo, mas ainda há muita gente que ainda gosta e isso ajuda-as a sonhar em ter
momentos como aqueles que estão a ver na televisão. Qual é o mal de sonhar?
Sonhar faz parte da vida. A canção diz “o mundo pula e avança”. As
pessoas nunca podem perder a capacidade de sonhar. O Porsche que ofereceram nos
Globos de Ouro, por exemplo. Foram tantas pessoas que ligaram. E só uma ganhou.
Mas uma ganhou! Eu acho que a televisão tem esse poder, é verdade, agora, o que
faz com esse poder é que pode ser preocupante. A minha preocupação, enquanto
jornalista, nem é tanto a de fazer esse tipo de análise, é mais de… Eu acho tão
mau quando se usam os poderes que se têm, que nos foram dados de boa vontade
pelas pessoas que confiam em nós e os desvirtuamos para devolver manipulando.
Isso é algo que para mim não faz qualquer tipo de sentido. Em televisão, fico
focada no poder jornalístico que a comunicação tem, mais do que nas mensagens
publicitárias e nos programas da manhã e da tarde. Acima de tudo, gosto que
as pessoas pensem. Se as pudermos convocar a pensar, sobre a realidade que as
rodeia, sobre os assuntos que lhes são importantes, eu acho que sim, acho que a
televisão deve usar bem esse poder. O resto… Depende de quem tem esse poder
na mão.
A.R.: A pressão sobre os média para conquistar formas de
financiamento não coloca também pressão sobre os jornalistas?
C.S.: Não. Que horror. Que ridículo. Isso é totalmente ridículo,
Ana. Desculpe lá. Eu falo, obviamente, por mim, pelo meu trabalho. Pela SIC. Pela
Impresa. Não sei o que acontece nas outras casas. Sei que houve jornais que
fecharam por pressão de administrações para interferir em conteúdos
jornalísticos. A questão, quando eu digo que ridículo, é que não tem que
ser assim. Aqui, na SIC, na Impresa, houve momentos muito em baixo e nunca
ninguém acima de mim me veio dizer qual era a palavra que eu tinha que pôr ou
que tirar, que pergunta é que eu tinha que fazer ou não fazer, nunca ninguém
veio interferir no meu trabalho ou no dos meus colegas. Essa independência, que
foi estipulada desde o início pelo Doutor Francisco Pinto Balsemão, está no
nosso ADN. Eu digo sempre que trabalho numa casa de total liberdade. Eu
quero acreditar que em muitos outros órgãos de Comunicação Social isso
acontece. Acredito que aconteça mais do que o inverso. Há tentativas de
pressão, obviamente que há, que dão resultado, aqui não dão. Comigo, nunca.
Comigo, com o Rodrigo Guedes de Carvalho, com os meus colegas que fazem os
noticiários, com os meus colegas repórteres, isso não acontece. Esse cunho de
independência é muito importante. Só esse cunho mantém a credibilidade
junto das pessoas, para que nos continuem a ver e a acreditar naquilo que
estamos a dizer. Noutros casos, eu tive conhecimento de isso acontecer,
nomeadamente em alguns jornais em papel. Já terminaram. Não funcionou. Outros…
Não sei, não estou lá dentro. Oiço, às vezes, algumas coisas mas não posso
falar sobre isso. Não conheço e eu não gosto de falar sobre o que não conheço.
"Eu digo sempre que trabalho numa casa de total liberdade."
A.R.: O facto de os jornais terem encerrado representa fidelidade
à ética?
C.S.: Não tem que ser assim. O bom jornalismo dá dinheiro. Se
for bem feito. Não é sobre desinvestir, é sobre investir. Em bons repórteres, com
tempo para investigar conteúdos diferenciados. Há muitos casos em que começa
a ser óbvio que os projectos acabam por fechar precisamente porque se
descredibilizam no mercado. Acontece num país como o nosso em que nos temos
essa ideia em que um jornal ou uma estação – e bem, eu acho – não devem assumir
nenhum dos lados. Em Espanha, por exemplo, há jornais assumidamente de esquerda
e assumidamente de direita. Em Portugal, o Observador é assumidamente – ou,
pelo menos, olhado como – um projecto mais à direita, mais conservador. Eu percebo
que isso se consiga. Como é que isso se vê? No espaço de análise, na escolha dos
cronistas. No dia-a-dia de trabalho de um jornalista de um jornal como o Observador
isso não se vê. É um trabalho completamente isento, completamente igual àquele
que eu faço, outro faz, e sempre também com qualidade. Esse cunho tem muito
que ver com os cronistas que se contratam para esse jornal. Há sempre aquele
esgar de nojo mas, lá fora, essa é a coisa mais natural do mundo. Há muitos
anos. Diz-se que pelo menos as pessoas sabem ao que vão. Os leitores sabem com
o que podem contar, se querem um jornal no qual se revejam. Eu,
pessoalmente, prefiro estar precisamente longe desses carimbos. Acho que uma
televisão como a SIC tem que manter esse grau de independência. Sempre.
Sempre.
A.R.: Para terminar, quem tem o poder: o público, os média ou
quem os financia?
C.S.: O último poder de todos é o do público, sem dúvida, porque
é o único que pode ligar e desligar quando quer. O que o leva a desligar e
ligar é o nosso trabalho e a confiança que tem em nós. Ou não. O poder
principal, a primazia do poder, é do público.