Ana Rocha: Quem é o Pedro Boucherie Mendes?
Pedro Boucherie Mendes: Cidadão, contribuinte. É uma questão interessante porque nós temos sempre uma espécie de dupla existência: aquela que nós fazemos de nós mesmos e aquela que os outros fazem de nós – muitas vezes a neurose começa quando nós começamos a pensar demasiado naquilo que significamos para os outros, naquilo que os outros lêem de nós. Não me consigo definir facilmente porque acho que sou muitas pessoas dependendo das circunstâncias, mas… Procuro ser, no fim do dia, se quiser, alguém que tratou as pessoas de forma justa e fair. Mais do que justa, a palavra fair, em inglês, talvez se aplique melhor. Ou seja, que tratei as pessoas como elas merecem ser tratadas na dinâmica das suas intenções para comigo e para o que as rodeia. Tratarei bem aqueles que estão bem com as coisas e tratarei de dizer que as pessoas não estarão a fazer a coisa correcta se essas pessoas tiverem más intenções. Digamos assim, para simplificar. Portanto, considero-me uma pessoa que procura tratar os outros da forma certa, pronto.
Pedro Boucherie Mendes: Cidadão, contribuinte. É uma questão interessante porque nós temos sempre uma espécie de dupla existência: aquela que nós fazemos de nós mesmos e aquela que os outros fazem de nós – muitas vezes a neurose começa quando nós começamos a pensar demasiado naquilo que significamos para os outros, naquilo que os outros lêem de nós. Não me consigo definir facilmente porque acho que sou muitas pessoas dependendo das circunstâncias, mas… Procuro ser, no fim do dia, se quiser, alguém que tratou as pessoas de forma justa e fair. Mais do que justa, a palavra fair, em inglês, talvez se aplique melhor. Ou seja, que tratei as pessoas como elas merecem ser tratadas na dinâmica das suas intenções para comigo e para o que as rodeia. Tratarei bem aqueles que estão bem com as coisas e tratarei de dizer que as pessoas não estarão a fazer a coisa correcta se essas pessoas tiverem más intenções. Digamos assim, para simplificar. Portanto, considero-me uma pessoa que procura tratar os outros da forma certa, pronto.
“Considero-me uma pessoa que procura
tratar os outros da forma certa.”
A.R.: Nasceu em Portugal?
P.B.M.: Nasci em Angola, que nessa altura era portuguesa. Nasci em 1970. Angola era uma colónia portuguesa.
A.R.: Então que relação é essa que tem com as palavras em inglês?
P.B.M.: Há muito tempo que eu uso termos em inglês e, ultimamente, muitas mais pessoas usam – sobretudo depois das redes sociais. Há uma amiga minha que me criticava imenso – minha colega da faculdade – por usar termos em inglês e agora usa muito mais do que eu. A língua inglesa é menos complexa e complicada do que a nossa e há termos, palavras, que sintetizam ideias para as quais, em português, precisamos de quatro ou cinco palavras. A palavra date, por exemplo, é muito mais simples de dizer do que encontro, namoro, intenção. Acho que tem que ver com isso, com a necessidade de me exprimir correctamente, e também uso palavras em francês, ainda que não tanto.
A.R.: No seu último livro, “Ainda Bem que Ficou Desse Lado”, escreve sobre televisão. O que é a televisão?
P.B.M.: Essa pergunta é um bocadinho aberta, mas eu escrevi o livro sobretudo para falar sobre a relação que as pessoas têm com qualquer coisa, neste caso com aquilo que vêem no receptor, no aparelho que têm em casa.
A.R.: A caixa mágica?
P.B.M.: Sim, o aparelho que têm em casa – não sei que aparelho, um computador, o que for. É, sobretudo, dessa televisão que eu quero falar no livro e é dessa televisão, creio eu, do conjunto de significados e significantes que me chegam a casa, ao quarto, à sala e à cozinha, vindos sabe-se lá de onde, com quem as pessoas parecem ter uma relação atribulada com, complicada ou, pelo menos, uma relação não serena. É dessa televisão que eu falo.
A.R.: Escreve que “a televisão é um fixador de contemporaneidades, frequentemente acrítico”. A televisão não nos diz o que pensar mas diz-nos sobre o que pensar?
P.B.M.: A televisão não nos diz o que pensar porque seria, até, proibido por lei. Agora, ninguém nos pode dizer aquilo que pensar, sobretudo a televisão, mas acaba por fazê-lo, obviamente. Eu… Eu… Eu acho que as pessoas dão demasiada importância à televisão mas isso tem que ver com outra coisa. Nós somos seres sociais e isso significa que temos que ter os outros bem medidos – portanto, isto são processos, não são processos conscientes, eu diria, são até processos inconscientes na maior parte dos casos –, e quando eu digo medidos é no sentido de termos sempre a temperatura do nosso grupo, como a nossa família, os colegas de emprego, os nossos amigos e, como grupo mais vasto, as outras pessoas. Para pertencer a esse grupo, o que as pessoas fazem, tendencialmente, é concordar umas com as outras e parece que o ser humano é excepcional – e essa foi uma das razões pelas quais derrotamos todos os animais do planeta terra – a arranjar argumentos que consubstanciem as suas crenças. Basta ver a questão da Igreja Católica, que é uma convenção com 2000 anos. As pessoas arranjam formas de estar de acordo com as ideias que circulam nas sociedades e a televisão tenta transmitir algumas dessas ideias. Por exemplo, se calhar, há 30 ou 40 anos, não se falava de aquecimento ou arrefecimento global e agora fala-se e, portanto, se se arranjar alguém que diga que não há aquecimento ou arrefecimento global, essa pessoa será imediatamente atacada – agora é atacada nas redes sociais – e nós confundimos isso com essa pessoa estar errada. Em princípio é capaz de estar errada, sim, mas… Não é seguro que assim seja. As televisões, quando são fixadores de contemporaneidade, tendem a veicular aquelas que são as ideias dominantes numa determinada altura nas sociedades. Por exemplo, ideias contemporâneas são agora o back to basics e a oposição ao consumismo mas, depois, as televisões fazem intervalos com marcas que apelam ao consumismo. Vivemos um bocado nesse paradoxo de dizer umas coisas e fazer outras. Acho que é isso e não me perturba muito. Só decidi escrever esse livro para chamar a atenção para que se pense sobre estas coisas e se as pessoas lerem e pensarem 3 segundos sobre o tema, podem seguir com as suas vidas.
P.B.M.: Nasci em Angola, que nessa altura era portuguesa. Nasci em 1970. Angola era uma colónia portuguesa.
A.R.: Então que relação é essa que tem com as palavras em inglês?
P.B.M.: Há muito tempo que eu uso termos em inglês e, ultimamente, muitas mais pessoas usam – sobretudo depois das redes sociais. Há uma amiga minha que me criticava imenso – minha colega da faculdade – por usar termos em inglês e agora usa muito mais do que eu. A língua inglesa é menos complexa e complicada do que a nossa e há termos, palavras, que sintetizam ideias para as quais, em português, precisamos de quatro ou cinco palavras. A palavra date, por exemplo, é muito mais simples de dizer do que encontro, namoro, intenção. Acho que tem que ver com isso, com a necessidade de me exprimir correctamente, e também uso palavras em francês, ainda que não tanto.
A.R.: No seu último livro, “Ainda Bem que Ficou Desse Lado”, escreve sobre televisão. O que é a televisão?
P.B.M.: Essa pergunta é um bocadinho aberta, mas eu escrevi o livro sobretudo para falar sobre a relação que as pessoas têm com qualquer coisa, neste caso com aquilo que vêem no receptor, no aparelho que têm em casa.
A.R.: A caixa mágica?
P.B.M.: Sim, o aparelho que têm em casa – não sei que aparelho, um computador, o que for. É, sobretudo, dessa televisão que eu quero falar no livro e é dessa televisão, creio eu, do conjunto de significados e significantes que me chegam a casa, ao quarto, à sala e à cozinha, vindos sabe-se lá de onde, com quem as pessoas parecem ter uma relação atribulada com, complicada ou, pelo menos, uma relação não serena. É dessa televisão que eu falo.
A.R.: Escreve que “a televisão é um fixador de contemporaneidades, frequentemente acrítico”. A televisão não nos diz o que pensar mas diz-nos sobre o que pensar?
P.B.M.: A televisão não nos diz o que pensar porque seria, até, proibido por lei. Agora, ninguém nos pode dizer aquilo que pensar, sobretudo a televisão, mas acaba por fazê-lo, obviamente. Eu… Eu… Eu acho que as pessoas dão demasiada importância à televisão mas isso tem que ver com outra coisa. Nós somos seres sociais e isso significa que temos que ter os outros bem medidos – portanto, isto são processos, não são processos conscientes, eu diria, são até processos inconscientes na maior parte dos casos –, e quando eu digo medidos é no sentido de termos sempre a temperatura do nosso grupo, como a nossa família, os colegas de emprego, os nossos amigos e, como grupo mais vasto, as outras pessoas. Para pertencer a esse grupo, o que as pessoas fazem, tendencialmente, é concordar umas com as outras e parece que o ser humano é excepcional – e essa foi uma das razões pelas quais derrotamos todos os animais do planeta terra – a arranjar argumentos que consubstanciem as suas crenças. Basta ver a questão da Igreja Católica, que é uma convenção com 2000 anos. As pessoas arranjam formas de estar de acordo com as ideias que circulam nas sociedades e a televisão tenta transmitir algumas dessas ideias. Por exemplo, se calhar, há 30 ou 40 anos, não se falava de aquecimento ou arrefecimento global e agora fala-se e, portanto, se se arranjar alguém que diga que não há aquecimento ou arrefecimento global, essa pessoa será imediatamente atacada – agora é atacada nas redes sociais – e nós confundimos isso com essa pessoa estar errada. Em princípio é capaz de estar errada, sim, mas… Não é seguro que assim seja. As televisões, quando são fixadores de contemporaneidade, tendem a veicular aquelas que são as ideias dominantes numa determinada altura nas sociedades. Por exemplo, ideias contemporâneas são agora o back to basics e a oposição ao consumismo mas, depois, as televisões fazem intervalos com marcas que apelam ao consumismo. Vivemos um bocado nesse paradoxo de dizer umas coisas e fazer outras. Acho que é isso e não me perturba muito. Só decidi escrever esse livro para chamar a atenção para que se pense sobre estas coisas e se as pessoas lerem e pensarem 3 segundos sobre o tema, podem seguir com as suas vidas.
“As televisões, quando são fixadores de
contemporaneidade, tendem a veicular aquelas que são as ideias dominantes numa
determinada altura nas sociedades.”
A.R.: A televisão contribui para reduzir assimetrias?
P.B.M.: Sim, sem dúvida.
A.R.: Então podemos dizer que a televisão é um instrumento democrático?
P.B.M.: Sobre isso não tenho uma dúvida, quanto mais não seja de democratização do poder. Eu acho que dou esse exemplo no livro – e não quero ser petulante, mas acho que já dei tantas entrevistas que já estou um bocado perdido. De que outra forma as pessoas poderiam saber sobre o Antigo Egipto ou, até, sobre as pirâmides a não ser através da televisão?
A.R.: Como pode a televisão ser democrática e acrítica?
P.B.M.: A democracia é um regime acrítico onde se criam condições para que sejam grupos – depois, aí, sim! – a tentar ser críticos no sentido construtivo. O voto é acrítico porque é implícito que sabemos o que estamos a fazer.
A.R.: Faz parte da parte da democracia…
P.B.M.: [Interrompe] O esclarecimento e o…
A.R.: O dar a conhecer às pessoas outras alternativas. A televisão faz isso?
P.B.M.: Tanto faz isso que, nas eleições, é regulamentado.
A.R.: Não falo, especificamente, sobre política.
P.B.M.: Mas é o que lhe estou a dizer, faz, acho que faz. A questão é que a televisão pode ser muitas coisas ao mesmo tempo, portanto, se estamos a ver ficção… Uma das séries mais polémicas dos últimos anos é a Guerra dos Tronos e, na Guerra dos Tronos, no mundo imaginário que se supõe ser no passado – é um passado medieval –, os homens fartam-se de violar as mulheres e matar crianças. É uma ficção, portanto, à partida as pessoas percebem que não se deve violar mulheres e matar crianças. Mas, na verdade, não há o outro lado. Não sei bem como responder. A televisão, como a vida em geral, tem uma ideologia e isso é inequívoco. Até acho uma certa graça quando dizem que as ideologias já não importam, porque é um absurdo. Todos nós agimos segundo uma determinada ideologia, que é uma ideologia judaico-cristã, e o que a televisão faz é perpetuar esses valores na medida em que os considera certos. Vemos isso na ficção, sobretudo nas telenovelas: no fim é sempre o bom que ganha e o mau é castigado. Portanto, acho que sim, acho que há o outro lado e acho que as pessoas percebem do que é que se está a falar e como é que é para ser.
A.R.: Paul Virilio escreveu que “já não é para as estrelas que lançamos o olhar, aquilo para o que olhamos é para os ecrãs”. Podemos falar de uma estetização do quotidiano?
P.B.M.: Podemos e ainda bem! É melhor um mundo em que as pessoas têm um acesso visual a determinados padrões de beleza – ou do que for! – do que um em que não têm. Essa ideia de que, essa ideia peregrina, de que antes é que era bom… Isso é completamente falso!, não só é falso como é um absurdo e revela uma profunda ignorância. Estou a incluir esse que você citou e outros supostamente sábios. Antigamente nós não entravamos em casa das pessoas – nós, sociedade –, portanto, não podíamos ver que um lavrador, no século XVIII, dormia na mesma cama com sete ou oito pessoas, que o pai violava a filha e o irmão violava a irmã. Essas coisas aconteciam mesmo. Havia uma mortalidade infantil brutal e as pessoas morriam por tudo e mais alguma coisa. Mas não havia televisão, então talvez fosse melhor. O que nós, talvez, possamos dizer é que – nós, pessoas – podíamos ter um mundo melhor do que aquele que temos. Agora, dizer que antes dos ecrãs era melhor… Uma das ideias sobre as quais tenho teimado ultimamente, mais para chatear do que para chegar a algum lado, é a de que eu prefiro estar sozinho a ler alguma coisa no meu telemóvel, que me interesse, a estar a falar com um idiota qualquer enquanto estou a almoçar. Eu, imagine, vou almoçar aqui no refeitório, sento-me e quero ler alguma coisa e senta-se um paspalho à minha frente para me falar sobre futebol. Para as pessoas, esse contacto humano é sempre superior – eu posso estar a ler um artigo interessantíssimo sobre Filosofia, no telemóvel, ou, sei lá, sobre o futuro da Humanidade mas, na ideologia – e é uma ideologia que a televisão promove – é muito melhor estar a falar sobre penáltis porque ele [o paspalho] está lá, in loco. Ainda bem que há ecrãs e ainda bem que podemos aprender montes de coisas. Eu andei na faculdade numa altura em que ainda não havia Internet e cheguei a fazer montes de trabalhos em máquina de escrever e não tem graça nenhuma ter que ir para a biblioteca ler apenas um livro que há sobre o tema. Era a única coisa que sabíamos. Agora eu vou ao ecrã – o ecrã que esse senhor critica – e há imensa coisa. A esses intelectuais, na maior parte dos casos, o que os perturba verdadeiramente – eu já não tenho filtro para os aturar – é que o conhecimento seja mais acessível a mais pessoas e eles deixem de ser os mandarins que mandam no conhecimento. O que não quer dizer que não tenham coisas válidas – estou a borrifar-me, se têm ou não –, só estou a dizer que antigamente, volto a repetir, para fazer um trabalho eu só tinha um livro que podia estar na biblioteca ou podia ter sido requisitado por outro e agora eu tenho a Internet. É preciso saber editar e aí os professores e os sábios têm um papel importante, sem dúvida.
“Essa ideia de que, essa ideia
peregrina, de que antes é que era bom… Isso é completamente falso!, não só é
falso como é um absurdo e revela uma profunda ignorância.”
A.R.: Escreve que na televisão vivemos da inverosimilhança e exemplifica: “saltar por cima de tubarões”. Na televisão, como na vida, acreditamos naquilo que é útil acreditar?
P.B.M.: O ser humano transformou o seu instinto de sobrevivência – todos os animais têm instinto de sobrevivência, desde a lagosta à barata, passando pelo ser humano, o instinto de sobrevivência e o de reprodução, por isso é que os homens mais jovens são mais agitados com as mulheres – em satisfação. Queremos muito, precisamos muito que o mundo faça sentido, porque, no limite, ficaríamos em casa, enfiávamos uma faca nos olhos e morríamos. A televisão ajuda a estabilizar a ordem de sentido dominante. Por isso é que na América Latina, por exemplo, a telenovela é considerada um estabilizador social. Isso não é um pouco como dar um calmante às pessoas?, pergunta. É, de facto, é – mas qual é a alternativa? A única alternativa é a educação, é que essas pessoas possam ir para a escola, para a universidade, para que possam pensar sobre a própria cabeça e, com um enriquecimento cultural suficiente, percebam que a telenovela é uma narrativa simplista. Pode a Ana ter a certeza e podem todas as pessoas ter a certeza de que, no dia em que as telenovelas deixarem de ter público, as televisões deixam de existir ou as telenovelas se vão sofisticar. As televisões, aqui ou noutro lugar, têm telenovelas porque as pessoas gostam do produto. As pessoas, de uma forma geral, e consoante as sociedades em que estão inseridas, precisam de constantes sociais: precisam que os táxis sejam amarelos, precisam que os sinais de trânsito sejam encarnado, amarelo e verde e precisam, de alguma forma, quando estão a ver a sua ficção televisiva, que as coisas funcionem mais ou menos de acordo com aquilo de que estão à espera: numa série sobre advogados, há um tipo que é um sacana e que será punido e há um tipo que parece ser um totó mas que vai dar à volta por cima. A ideia é que eu amanhã me transforme também no tipo que vale a pena e não no sacana. Acho que esse papel é importante.
“A televisão ajuda a estabilizar a ordem
de sentido dominante.”
A.R.: Então deixamos de morrer de doença, fome ou amor e passamos a morrer de tédio?
P.B.M.: Sim, mas eu acho que a qualquer pessoa que tenha dois dedos de testa a realidade vai entediar.
A.R.: A televisão também entendia?
P.B.M.: Claro, sobretudo se houver pouca escolha mas, por exemplo, a televisão atingiu um nível sobretudo técnico…
A.R.: [Interrompe] De que televisão estamos a falar?
P.B.M.: A questão é que quem não percebe de televisão o suficiente, como me parece ser o seu caso – e não é uma ofensa pessoal – tem uma espécie de ansiedade e quer muito que haja uma explicação e uma ordem sobre isso. O que eu lhe ia responder era que a televisão é, sobretudo, um mecanismo tecnológico. Actualmente, em 2019, a tecnologia permite que nós tenhamos a televisão de sempre e, depois, as chamadas plataformas, as gravações… Tudo isso é televisão: tudo isso são conteúdos em vídeo e em som e com uma duração e feitura, portanto, uma forma de fazer, que são típicas da televisão. O que eu lhe ia dizer há pouco é que, felizmente, agora, vivemos numa era em que se eu me começo a interessar mais por cozinha, por culinária ou tachos, panelas e receitas, há muito por ver. É uma questão de saber procurar e eu digo muitas vezes, como provocação, que há uma coisa chamada internet em que se pode pesquisar “quais são os melhores conteúdos sobre…”. Existe uma televisão dominante, a televisão de fluxo, que é aquela que as pessoas tendem a preferir – é carregar no botão – e existe a televisão que nós podemos escolher. É um pouco como ir a uma biblioteca, só que aqui com a vantagem de ser em casa e com o comando na mão. Por isso, quando eu digo que as pessoas que não percebem muito de televisão têm alguma ansiedade em perceber o que é a televisão, tem que ver com isso: a televisão é uma fonte de saber.
A.R.: Aqui, estamos a falar com alguém que representa…
P.B.M.: Eu só me represento a mim próprio. Há muitos livros que são muito maus, como você sabe, e isso nunca afecta a reputação dos livreiros. Portanto, há televisão boa e televisão má. Eu não tenho muita paciência para falar sobre a televisão má porque acho que as pessoas estão a transferir a sua responsabilidade para a televisão. Se aquele conteúdo me repugna, que se desligue a televisão, mude de canal ou se vá passear. As pessoas não gostam muito de o ouvir, mas a televisão que têm em casa é fruto das suas preferências. Se eu puser um programa muito interessante com o Júlio Isidro a entrevistar a Simone de Oliveira, com óptimas perguntas, esse programa não vai ter muita audiência. Ponto final. E o resto é conversa. E se o meu canal não tem muita audiência… Vai à falência e fecha. Então, se calhar, é melhor fechar. Não digo que não: fecham-se todos, pronto.
“As
pessoas não gostam muito de o ouvir, mas a televisão que têm em casa é fruto
das suas preferências.”
A.R.: Porque é que, ao terminar o livro, escreve que felizmente não é sociólogo?
P.B.M.: Porque eu tenho alguma dificuldade com as Ciências Sociais, apesar de ser das Ciências Sociais. Deixe-me tentar responder-lhe de outra forma. Eu não consigo entender, por exemplo, a questão dos spoilers. É muito melhor vermos uma série de televisão sabendo o que vai acontecer do que não sabendo, porque isso permite-nos apreender, portanto, receber a série (ou filme) de uma forma muito mais completa. É o mesmo que ir a um museu enriquecido por informação. Os spoilers permitem compreender o valor de uma série. Claro que em algumas situações eu também não quero saber. No caso d’Os Sopranos, série agora disponível com a HBO, para lhe dar um exemplo, o conselho que eu dou é o de que é muito melhor ler primeiro sobre o tema – Wikipédia, sem preocupação – para depois, ao ver a série propriamente dita, sabermos por onde é que aquilo caminha e podermos, emocionalmente e mentalmente, enquadrar as coisas muito melhor. A questão da sociologia – já não me lembro ao certo do que queria dizer com aquilo, era provavelmente uma provocação – tem que ver justamente com isto: às vezes a vida é mais simples do que parece, às vezes as coisas são mais simples do que parecem. No caso da televisão, sempre que um programa é bom, uma série é boa ou um documentário é bom, não é televisão: as pessoas referem-se-lhe pelo nome. Agora vivemos num tempo em que as pessoas vêem Netflix, tudo o que está na Netflix é bom e tudo o que dá na televisão é mau – excepto aquele um programa ou dois, esquecidos no canal dois às duas da manhã. Quero dizer, que as pessoas sejam inseguras, que tenham vidas que não são muito boas, que tenham vazios interiores e que não sejam cultas, eu não me importo nada – agora, que nos estejam a esfregar constantemente isso na cara? Eu não preciso que as pessoas me digam que só vêem Netflix; eu não quero saber da vida delas. As pessoas fazem questão de dizer e eu conheço bastantes coisas que estão na Netflix e que são menos boas, mas se um apresentador se engana numa capital, nas redes sociais, imediatamente, há pessoas a comentar que só vêem Netflix.
“Os
spoilers permitem compreender o valor
de uma série.”
A.R.: Eu fiz uma sondagem, ontem, no Instagram: perguntei aos meus seguidores se sentiam pessoas/consumidores melhores por não ver televisão. Mais de metade respondeu afirmativamente.
P.B.M.: Claro! Pode perguntar, um dia, quando a Selecção Nacional participar no Mundial… Aí dá jeito. As pessoas são muito cansativas e não pensam muito e dão muita importância a coisas que não têm importância nenhuma. Na verdade, aquilo que as pessoas fazem junto ao ecrã só a elas diz respeito. Não me chateiem com isso.
A.R.: O espectador tem diversidade – mas tem critérios?
P.B.M.: Cada um sabe de si e Deus sabe de todos. Quero dizer, não sei nem me interessa. Não sou do Governo. Não sou o Ministro da Educação. Mas eu acho que podemos… Podemos perfeitamente ver o nível de instrução de um povo, ou de uma sociedade, a partir da televisão – isso podemos.
A.R.: O que diz a programação da SIC?
P.B.M.: É claramente baixo o nosso nível médio, mas não é preciso ver televisão. Portugal… As pessoas não são muito letradas em Portugal. Certo? Claramente. Parece-me evidente. Agora, a culpa é da televisão? Eu acho que não, mas… Mas quem sou eu. Num debate com uns imbecis de uns sociólogos, possivelmente, eles vão dizer que a culpa é da televisão.
A.R.: Escreve que “na televisão a palavra nunca morre e ninguém está calado”. Como comunicar na era do ruído?
P.B.M.: Os momentos, na nossa vida, em que há silêncio são muito poucos, se você pensar: missas, velórios, e mesmo assim as pessoas começam a falar.
A.R.: Como é que nós nos podemos tornar relevantes?
P.B.M.: Não sei, algumas mulheres podem pôr mamocas falsas, por exemplo, para se tornarem relevantes.
A.R.: [Risos]
P.B.M.: É verdade. É uma forma de se tornarem relevantes, outras pintam o cabelo, outros vestem umas roupas mais coiso… A nossa vida é a busca da relevância. Uns emagrecem, outros engordam, uns cortam o cabelo, outros vão para a televisão dizer umas coisas… Mas, e penso que esta é a resposta que você procura, as pessoas, em televisão, gostam daqueles que parecem saber do que falam – não significa que saibam do que falam, são duas coisas diferentes. Ter um ar convicto, assertivo e dizer as coisas com um tom de voz… As pessoas confundem isso com competência, incluindo algumas pessoas que trabalham em televisão. Gostamos, também, de professores com ar seguro e dominante, mais do que o que parece inseguro e que gagueja: esse parece menos relevante.
“A
nossa vida é a busca da relevância.”
A.R.: Falamos de aparência ou de assertividade e de confiança como competências essenciais?
P.B.M.: A vida são só aparências, sabe isso, não é? Só.
A.R.: [Risos]
P.B.M.: Não era para rir agora. (…) Eu acho que a televisão parabeniza um determinado tipo de aparência, talvez seja isso – uma espécie de categorização. Eu costumo dar este exemplo. Se for com o meu filho à urgência de um hospital, eu tenho uma imagem visual em mim do que eu considero ser um médico(a). Se me aparecer um tipo com ar de rocker, com grande cabelo, grandes olheiras e uma barbicha, argola na testa, bata branca e anéis de Heavy Metal… Pode ser o melhor médico de todos, não sabemos, mas eu se calhar vou pensar “o que é isto?, quem é este médico?”. Enquanto que se me aparecer um médico com ar normal, bonito e com o aspecto de anúncio, eu vou confundir essa aparência com competência. Mais uma vez, é a questão de há pouco, portanto, a televisão parabeniza isso [a aparência] um pouco. Se houvesse uma série de televisão que tivesse um médico, músico de Heavy Metal, a série iria falar sobre esse tema. Provavelmente arranjar-se-ia um superior hierárquico para discutir a aparência, o médico defendia que não podemos julgar as pessoas pelas aparências e o argumentista arranjaria um caso qualquer em que ficaria comprovada a competência desse médico. Viveríamos todos felizes para sempre, porque não podíamos julgar as pessoas pelas aparências, mas a verdade é que nós julgamos as pessoas pelas aparências.
A.R.: “A televisão é uma indústria (…) cujo objectivo último não é manipular o público e condicionar as suas ideias e pensamentos, mas sim ganhar dinheiro”. Os fins justificam os meios?
P.B.M.: Os fins justificam os meios? Não, claro que não, mas as televisões procuram ganhar o máximo de dinheiro que conseguirem – como os fabricantes de carros e os cabeleireiros.
A.R.: A utilização que o público faz é de sua responsabilidade?
P.B.M.: Não é bem isso. Não é só isso. Aquilo que se descobriu – é uma descoberta, não é uma invenção – é que as pessoas gostam de trocar as coisas umas com as outras. Eu pesco, tu cultivas umas maçãs, eu dou-te uns peixes e tu dás-me umas maçãs. O Capitalismo é uma coisa óptima quando o nosso pai tem um stand de automóveis, vende imensos carros, é rico e pode pagar-nos umas viagens a Nova Iorque. Quando a televisão quer ganhar dinheiro, é mau. Esta é outra das coisas que prova a ignorância das pessoas em Portugal, de forma geral. Nós não temos, em Portugal, um verdadeiro conhecimento do que é a Economia e do que é o Capitalismo, digamos assim, e o Capitalismo não tem que ser mau para ninguém. O seu pai pode ter um stand de automóveis e vender imensos carros e não há problema nenhum. Claro que se ele vender um carro defeituoso a alguém e essa pessoa se for lá queixar ou tiver um acidente, o seu pai tem que ser punido de alguma forma – tem que haver mecanismos na sociedade para que seja punido. Em princípio, há leis. Na televisão é um pouco a mesma coisa: a gente faz uns programas, tem público e depois há mais dinheiro e o meu salário é aumentado, porreiro! Se há uma linha vermelha que é pisada as pessoas queixam-se, neste caso à ERC, e nós somos punidos. São os mecanismos naturais da actividade. Há nesta como há noutras.
A.R.: Como aconteceu com o Supernanny.
P.B.M.: Sim, também há pessoas que vendem água engarrafada e é giro: ainda não apareceu, em Portugal, alguém que boicote as pessoas que bebem água engarrafada.
A.R.: Está para chegar.
P.B.M.: Ninguém se deve ter lembrado ainda, não é? Há um meme – memes são imagens provocadoras que circulam pela Internet – que é um dos meus preferidos. Vê-se uma manifestante a protestar contra a Nike e essa miúda está calçada com ténis Nike. É um pouco isso. Por exemplo, eu acho uma certa graça às pessoas que falam sobre a poluição e o aquecimento global. Se as pessoas deixarem de pintar o cabelo, de se arranjar ou de pôr cremes, em princípio há menos poluição no planeta. As tintas para o cabelo são uma coisa muito tóxica. Comecem por vocês, comecem por dar o exemplo e pode ser que a coisa funcione. Comecem a usar sempre a mesma roupa. O têxtil é uma das indústrias mais poluentes de todas. Eu não vejo essas pessoas, que se posicionam a favor do clima, a abdicarem de comprar roupa – mas se calhar eu é que sou maluco.
A.R.: Que generalizações se fazem sobre a televisão e são falsas?
P.B.M.: A principal tem que ver com a ideia de que a televisão é muito poderosa.
A.R.: É falso?
P.B.M.: É, é, é… Nós não, nós podemos ser muito poderosos, mas a nossa espingarda – digamos assim – não acerta onde nós queremos.
A.R.: Cita alguém no seu livro para dizer que a televisão tanto vende sabões como elege políticos.
P.B.M.: Foi o antigo director da SIC que disse. O que eu estou a tentar dizer com a minha resposta, agora, é que o poder para vender um político não é passível de ser usado como se quer. Pode acontecer como pode não acontecer. Nós, na televisão, se calhar, tentamos montes de coisas e não aconteceu, não se conseguiu. A televisão, depois, tem esta coisa que é um fenómeno muito fácil de perceber mas muito difícil de descrever e que, em Portugal, se diz Totobola à segunda-feira: sempre que temos um programa que funciona, que resulta, para as pessoas é óbvio mas, por trás desse óbvio, há horas e horas de trabalho, dinheiro investido, dúvida e angústia – porque houve muitos programas que resultaram em boa audiência mas houve muito mais programas que nunca tiveram audiência. E como as pessoas querem muito dar ordem ao seu mundo, procuram explicações que sejam evidentes e contentam-se com as mesmas.
“O poder para vender um político não é
passível de ser usado como se quer.”
A.R.: Então sente-se confortável num mundo desordenado?
P.B.M.: Claro, claro, tudo pode acontecer. Sinto-me confortável, primeira resposta; segunda é que não tenho outro remédio.
A.R.: Pode viver na ilusão de controlo, organização ou simplificação – que é aquilo que me está a dizer que o público tenta fazer.
P.B.M.: Sim – e eu também faço parte do público –, o que eu estou a dizer é que a nossa actividade tem uma enorme componente de aleatoriedade, mas quando um programa funciona, normalmente, para o público é muito evidente e muito óbvio.
A.R.: O que desqualifica os profissionais que produzem aquele conteúdo.
P.B.M.: Desqualifica, sim, mas para além disso é como se as pessoas soubessem explicar muito bem aquilo que se passa e, como o mundo é desordenado, não é passível de uma explicação assim tão simples. Há quem defenda, aliás – e os cientistas que suportam isto são os primeiros a afirmar que não têm certeza –, que as pessoas fazem primeiro, pensam depois e que o pensamento não é mais do que arranjar argumentos para os nossos comportamentos. Vemos muito isso nas séries passadas em tribunais. Porque é que agrediu a vítima? Estava a passar um mau momento, fui despedido, discuti com o meu chefe, fiquei chateado com a vida – as circunstâncias atenuantes. A verdade é que o ser humano tem, dentro de si, uma violência que é depois proporcional à sua força. Entretanto, o ser humano inventou as armas. Há sempre um puto americano, com muita raiva dentro de si, que é um franganote mas que tem acesso a uma metradalhora e, infelizmente, ao carregar num botão, consegue aniquilar 30 ou 40 pessoas. É culpa da televisão? É culpa dos videogames? É culpa do fabricante de armas? Há de ser culpa de todos e não há de ser culpa de ninguém. Na minha opinião, não é culpa de ninguém – quanto muito é dos pais, que não perceberam que o puto estava a passar um mau bocado, mas não da televisão ou do fabricante de armas.
A.R.: A blogosfera desestabiliza os média?
P.B.M.: Não, acho que não. Acho mesmo que não. Acha que sim?
A.R.: Pergunto porque estive na Conferência A Internet é um Lugar Estranho, em Novembro, e senti que tentou provocar A Pipoca Mais Doce.
P.B.M.: Já não me lembro muito bem, mas a questão das fake news é uma coisa que me irrita, você não imagina. Vou dar um exemplo – e eu não sou religioso, pelo que até é um exemplo que me está a custar dar porque parece que estou a puxar a conversa para aí. Nem se quer há provas de que Jesus tenha existido. A Igreja é uma gigante fake new. Não há mal nenhum em ver fake news, não há mal nenhum em ter tradições e não há mal nenhum em acreditar em coisas que nos fazem bem. Há muitas coisas que nós repetimos uns aos outros e que são fake. Por exemplo, que os relógios foram inventados pelos Holandeses no século XVI – foi uma merda que eu ouvi há algum tempo e que eu vou dizendo mas que pode ser fake. [Para o jornalista] É absolutamente impossível rever cada circunstância, cada facto, cada acontecimento, confirmar todos, um por um. Há uma coisa chamada vida real que se intromete sempre nas nossas melhores intenções. Será que eu estou a defender que os média publiquem sem confirmar? Não, o que eu estou a dizer é que eu trabalhei com jornais e sei que é impossível. Portanto, eu não tenho muita paciência para essas conversas, sobretudo em debates. Eu sei, porque sou minimamente inteligente, que as pessoas vão às conferências para ouvir as coisas que já sabem – para confirmar – mas eu, sempre que vou a conferências, digo precisamente o contrário e as pessoas ficam muito admiradas. Depois há uma ou duas que percebem e que gostam, mas no computo geral as pessoas ficam muito admiradas por saber que há outros pontos de vista. As pessoas sabem que há outros pontos de vista mas ficam muito admiradas, porque não os querem ouvir. Percebe?
“A Igreja é uma gigante fake new.”
A.R.: Percebo que tem a reputação de ser um provocador. Gosta da sua reputação?
P.B.M.: Não, eu não me consigo é conter – eu gostava de me conter.
A.R.: Gostava?
P.B.M.: Gostava, poupava-me imenso ódio, como deve calcular. Não é muito agradável ser odiado sistematicamente, pode ter a certeza. Não é uma energia. Não me estou a armar em vítima, mas não é agradável. Gostava de ser mais neutro, mas eu não me consigo é conter. (…) Por exemplo, um amigo meu chateou-se comigo porque achava que eu estava a apoiar o Bolsonaro. O que eu disse foi que no Rio de Janeiro as pessoas morrem como tordos com tiros nos cornos, pelo que até eu votaria no Bolsonaro. Nós não podemos censurar pessoas que têm medo de sair à rua e de levar um balázio na corneta. “Sabes lá o que é o Bolsonaro!”. E eu respondi, “também não sei o que é levar um tiro na corneta, nem tu!”. É um pouco isso. Essa questão, sobre esse debate,… Mesmo com os organizadores – e eu respeito isso – não se percebe bem o que se espera dessas conversas. Na Internet nós temos coisas boas e coisas más, como em tudo na vida. O debate podia ser sobre a vida em geral.
A.R.: Achei que o debate foi pouco estruturado.
P.B.: Como qualquer debate em Portugal. Certo? Não acha injusto que algumas pessoas sejam mordidas por escorpiões e outras não? Um gajo tem que ter opiniões sobre estas coisas. Eu não acho nada.
Priscilla de Sá: Como é que o digital está a impactar a estratégia de televisão?
P.B.M.: Eu acho que há dois digitais a considerar. Um é o mais importante na nossa actividade e é bom que as pessoas o percebam de uma vez por todas. Quando digo que o percebam, o que quero dizer é que alguma pessoa que leia esta entrevista o consiga atingir. O digital facilita a feitura da televisão. As câmaras são melhores, os computadores são melhores, as luzes são melhores. Isso permite que a televisão seja melhor. Antigamente, havia coisas que não se podia fazer porque não havia tecnologia, não havia digital para isso. Por um lado, a estrutura. Eu tenho aqui um telemóvel na mão, um iPhone, e isto é muito digital, cá dentro, portanto, há este digital bom. Depois, há o digital que espalha os conteúdos – as redes sociais, e não sei quê – que também é óptimo do lado do utilizador e que representa enormes desafios para as televisões. O principal desafio que representa é o desafio económico porque tudo o que é digital é extremamente caro, sobretudo porque há empresas no mercado que têm dinheiro que nunca mais acaba. Uma série como The Crown, da Netflix, custa mais (só a série) do que todos os canais da SIC durante um ano.
A.R.: A televisão, em Portugal, não tem dinheiro?
P.B.M.: Até pode ter, a questão é que a Netflix tem muito mais. É um pouco como se o seu pai tivesse um stand de automóveis e aparecessem uns americanos que, com os carros à venda, esmagassem o seu pai. O que é engraçado e irritante nos portuguesinhos é que “ahahah, eu só vejo Netflix”, mas a Netflix não tem nenhuma preocupação com Portugal, com os valores portugueses, nem com a cultura portuguesa. Portanto, sim, podemos chegar a um dia em que todas as televisões portuguesas vão à falência mas, depois, a Netflix não vai fazer reportagens sobre o Castelo de Guimarães e sobre os golfinhos. A Netflix está-se borrifando para Portugal e, nessa altura, quem se vai rir sou eu.
A.R.: Nessa altura, as pessoas terão que pagar…
P.B.M.: [Interrompe] Não, não vão ter que pagar porque as televisões já terão ido à falência para contentamento dos portuguesinhos que comentam em redes sociais. Esta questão da Netflix é engraçada – e eu gosto muito de ver, não me entendam mal – mas há ameaças que são verdadeiras, em que as televisões podem falir. Não é a minha televisão, não estou preocupado com o meu emprego, estou a dizer que podem falir ou tornar-se tão irrelevantes que, depois, o que é a cultura portuguesa ou o que resiste há 900 anos, puff. Portanto, o digital também ameaça esse tipo de separação que sempre houve tradicionalmente. A televisão alemã defende a televisão alemã, a televisão italiana defende os conteúdos italianos, a televisão portuguesa defende os conteúdos portugueses…
A.R.: As audiências diminuem todos os anos?
P.B.M.: Não, não diminuem – até cresceram o ano passado –, mas pode haver um dia em que isso aconteça, em que não há audiência suficiente para que se paguem contas. Aliás, Portugal quase já não tem jornais e isso parece não preocupar essas pessoas do Facebook.
“Portugal quase já não tem jornais e
isso parece não preocupar.”
P.S.: O que vale mais: talento ou disciplina?
P.B.M.: Acho que as duas coisas, mas num país como Portugal, talvez o talento. Televisão bem feita, tecnicamente, com convidados pouco talentosos é melhor do que televisão feita com convidados talentosos mas em que não se percebe nada porque está tudo escuro. Os portugueses gostam muito de gozar com os alemães mas, depois, gostam de comprar os carros que os alemães fazem. Porquê? Porque os carros são bons. Eu também tenho carros alemães e não conto com ter outros – nunca fiquei apeado com nenhum carro alemão e tenho carros alemães há… 15 anos. Você comprava um carro alemão ou um português?
A.R.: Alemão.
P.B.M.: O meu ponto é um bocado esse mas, em Portugal, é melhor ser talentoso. Dizemos que as pessoas disciplinadas são chatas. Ele é um chato, chega todos os dias às 9h, pousa a sua chave, vai beber café, é um chato. As pessoas, em Portugal, ficam incomodadas com as pessoas disciplinadas. Incomoda-as.
A.R.: Considera-se talentoso ou disciplinado?
P.B.M.: Eu não sei. Eu acho que, eventualmente, enfim, talentoso, poderia dizer que sim, mas acho que lhe somei sempre alguma disciplina e alguma organização, sobretudo, que me poderá ter levado mais longe do que a uma pessoa menos organizada. Mas, de uma forma geral, o disciplinado, em Portugal, no contexto português, dará menos nas vistas. Se tiver a sorte de se estar nas tintas, e de ser feliz assim, é muito melhor ser disciplinado mas, para se conseguir ter uma carreira nos média – ou palco, como você diz – é melhor ser talentoso. Eu tenho a convicção de que as pessoas talentosas têm algum tipo de disciplina ou de organização, quanto muito com o seu talento, de outro modo, acabam por se afogar nas oportunidades perdidas que têm. Uma coisa que não se discute em Portugal e que eu lhe posso dizer, ainda que não me tenha perguntado, é que o pico das pessoas passa.
A.R.: O pico das pessoas passa? Como assim?
P.B.M: Temos carreiras hoje que vão para cima, tendencialmente, mas que depois estabilizam ou tendem a baixar. Aí é importante ser disciplinado.
A.R.: O que acontece com as carreiras em Portugal?
P.B.M.: Na função publica não acontece nada.
A.R.: Na televisão.
P.B.M.: Depende, aparecem ou não no ecrã? A câmara é impiedosa, sobretudo com as mulheres, que começam a ficar com rugas – já todos sabemos o que acontece. Os homens têm mais longevidade de ecrã. Não estou a dizer que é justo, mas é o que acontece. Acho que temos carreiras longas na televisão portuguesa, temos é poucos canais de televisão.
A.R.: Que privilégios é que os portugueses têm, na televisão portuguesa, e que não sabem? Somos um público privilegiado ou não?
P.B.M.: Nós temos boa televisão – melhor televisão do que a economia do país, digamos assim, do que o país vale em produção económica. Por exemplo, países como a Alemanha, Bélgica e a França não têm este número de canal de notícias. Este número de canal de notícias não tem nenhuma explicação lógica. Os portugueses têm quatro ou cinco canais de notícias. Ser um velhote em Portugal – um velhote, leia-se, ser-se uma professora de Matemática que se reformou, com 67 – pode passar o dia inteiro a ver televisão porque tem uma boa televisão, de entretenimento. Noutros países, até mais avançados do que nós, essa televisão seria muito mais chata e aborrecida. Mas só passando por isso, só estando um ano a viver noutro país. É difícil defender as coisas desta forma. O que eu sei é que as televisões portuguesas esforçam-se imenso pelos seus espectadores.
“O que eu sei é que as televisões
portuguesas esforçam-se imenso pelos seus espectadores.”
A.R.: É um amor platónico?
P.B.M.: Não, até posso admitir que se possam esforçar mal, mas esforçam-se. Véspera do 25 de Abril, vai toda a gente de férias, mete um filme qualquer. Não: é véspera do feriado, que programa é que vamos fazer? Na SIC e nos outros canais, não me entenda mal, há uma preocupação com o espectador e com que o espectador tenha o melhor produto possível. Gasta-se dinheiro e não se desiste. Nunca há um “já são onze da noite, mete uma coisa qualquer”. A nossa televisão é muito boa até muito tarde. Do ponto de vista racional, não faz sentido zero.
A.R.: Porquê?
P.B.M.: Nos outros países, por exemplo, em Itália – que é um país latino, como nós –, há anúncios eróticos às onze da noite. Isto significa que a maior parte das pessoas já se foi deitar e que já se pode pôr aquela tralha tipo televendas. À uma da manhã temos boa televisão em Portugal. Os portugueses deitam-se muito tarde.
A.R.: Quais são os seus privilégios?
P.B.M.: Eu estava/ estive à hora certa, no sítio certo, e depois fiz por aproveitar as oportunidades que a vida me deu – digamos assim. Eu sei que sou privilegiado, está bem? Sei mesmo, até porque gosto do que faço e não o sinto como trabalho. Ter nascido em Lisboa ajudou, ter sido homem ajudou… Acho que ser equilibrado emocionalmente ajudou.
A.R.: Considera-se equilibrado emocionalmente? [Risos]
P.B.M.: Pois, você está-se a rir.
A.R.: Eu estou a rir-me pela sua reputação.
P.B.M.: Eu nunca fui despedido, nunca tive um processo disciplinar, nunca tive um problema com um subordinado, nunca, nunca me aconteceu. Isso significa que eu sei bem o que faço. Aí tem o exemplo de uma qualidade que eu tenho e que gostava que me fosse mais atribuída: eu sou uma pessoa híper-responsável. Se me convidar para um colóquio na sua Universidade em Leiria, às onze da manhã, eu estou lá às dez para as onze. Eu nunca tive um problema profissional com um chefe, com um colega, nunca aconteceu e sempre fui quem eu sou. Há montes de aves raras em Portugal, cheias de talento e muito simpáticas, cheias de problemas com… Portanto, o que lhe digo quando falo sobre ser equilibrado emocionalmente não tem que ver com o meu mundo interior, tem que ver com aquilo que se faz e que se pode fazer no ambiente de trabalho. Também nunca fui expulso de um restaurante, nunca andei à porrada, tenho noção do que são os limites dentro das situações. Era aí que eu queria chegar quando falava sobre o equilibro emocional. Eu não acho que é ser disciplinado, acho que é ser inteligente e ter uma coisa que não se usa muito em Portugal – o senso-comum. Eu acho que tem um pouco a ver com a forma como as pessoas se relacionam umas com as outras e com a consideração que têm por elas porque, no fundo, não entrar em conflito com as pessoas – ou saber recuar na altura certa, não deixar escalar – é uma forma de respeito pelas outras pessoas e é uma coisa que não acontece muito em Portugal. Os portugueses têm a mania que são de brandos costumes mas não são nada, não acho que sejam, e agora estão a descobrir que há imensos homens que são violentos com as mulheres. Quem diria, não é, no país dos brandos costumes?
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