Ana
Rocha: Quem é a Luísa
Faria?
Luísa
Faria: Sou professora da
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, desde
1985, actualmente sou directora do Mestrado Integrado em Psicologia e sou Psicóloga.
Realizei aqui todas as provas académicas: licenciatura, provas de aptidão pedagógica
e capacidade científica (substituto do mestrado para a carreira académica), doutoramento
e agregação. Tenho investigado sobretudo nas áreas da motivação e da
inteligência – desde há 30 anos –, e tenho publicado a nível nacional e
internacional sobretudo nesses domínios. O meu percurso foi, portanto, sempre
feito aqui, na faculdade, e sempre relacionado com a Psicologia.
A.R.: Quais são as suas áreas de Actividade
Científica?
L.F.: A motivação para a realização e para
competência e a inteligência. Mais recentemente, também a inteligência
emocional e social, sempre nas suas relações com o desempenho académico, e o desenvolvimento
diferencial em função de variáveis importantes, como o género e a classe social.
Por outras palavras, estudo o modo como diferentes grupos, em função de
variáveis sociais – como a classe social – e variáveis psicossociais – como o
género, que é biológico mas também produz diferenciação social – se desenvolvem
e se relacionam com a motivação, a inteligência e o desempenho.
A.R.: Que razão para o interesse nessas áreas?
L.F.: Estas variáveis são claramente
diferenciadoras: por exemplo, o facto de
se nascer homem ou mulher marca e define os percursos sociais.
"O facto de
se nascer homem ou mulher marca e define os percursos sociais."
A.R.: De que forma é que marcou o percurso da
professora Luísa Faria?
L.F.: As diferenças, que têm desfavorecido
sempre as mulheres, preocupam-me particularmente. Há mais mulheres analfabetas.
As mulheres são preteridas para cargos de poder. Há preconceitos, estereótipos
e crenças erróneas acerca do género feminino. Apesar de tudo, a classe social
ainda é a variável mais diferenciadora do ponto de vista social e psicológico,
quer pela falta de oportunidades que as classes não dominantes – e, portanto,
desfavorecidas – enfrentam, quer pela ideia de que a pobreza não se refere
apenas à falta de bens económicos e de oportunidades sociais – podendo também ser
encarada como uma questão de falta de competência, de falta de autoestima e de
falta de valor pessoal. Estas questões marcam os percursos de vida das pessoas.
A.R.: De que forma é que o contexto de vida
da professora influenciou as (suas) escolhas profissionais? Licenciada, Mestre
e Doutorada, é Docente, Investigadora e Directora do Mestrado Integrado em
Psicologia. Com artigos e livros publicados, tem por áreas de especialização a motivação
e a inteligência.
L.F.: As áreas de especialidade aparecem como
oportunidades no quadro da faculdade. É verdade que sempre fui uma aluna de
excelência. Penso, por isso, que tenha que ver com características pessoais. A
motivação para a realização e para a competência têm que ver comigo. Valorizo a
competência, valorizo o meu percurso profissional – em que invisto – e não
desisto à primeira, persisto a despeito das frustrações. Essas características
foram importantes ao longo da minha vida e ao longo de todo o percurso de
escolaridade.
"Falar de motivação é falar de persistência, de investimento e de
esforço, de força para ultrapassar os obstáculos, para mobilizar o meio, para procurar
ajuda quando é preciso e para largar aquilo que não vale a pena. A motivação
também implica saber desistir."
A.R.: O que é a motivação?
L.F.: A motivação é o aspecto dinâmico da
acção – é o que nos leva a lutar, a agir, a procurar motivos, a lutar por eles
e a ir até ao fim. Digamos que é uma energia que nos permite continuar a
trabalhar a despeito das frustrações e das dificuldades. Subjaz a ideia de que
a motivação tem relações com a inteligência – sem dúvida! – porque potencia a
inteligência, pois há pessoas muito inteligentes que não têm motivação e
pessoas menos competentes intelectualmente que conseguem superar-se, canalizar
energia e atingir objectivos desafiantes. De facto, um dos aspectos principais da motivação são os objectivos, as metas que
ambicionamos ao longo dos nossos percursos. Também a capacidade para
transformar esses objectivos noutros novos, e a capacidade para os reformular, para
aumentar a fasquia. Lutar para fazer. Lutar para desfazer. Falar de motivação é falar de persistência, de investimento e de
esforço, de força para ultrapassar os obstáculos, para mobilizar o meio, para procurar
ajuda quando é preciso e para largar aquilo que não vale a pena. A motivação
também implica saber desistir. Às vezes, a melhor forma de continuar
motivado é desistir de um caminho que não nos leva a lado nenhum. Falar de
motivação é, portanto, falar de persistência e de desistência. E, também, de
sucesso e de fracasso. O fracasso é, talvez, o estimulo maior da motivação – o
fracasso, as dificuldades e os desafios.
A.R.: A motivação é uma competência que nasce
connosco ou que é desenvolvida?
L.F.: Há várias concepções sobre isto. A
concepção dominante – e a que é mais potenciadora do desenvolvimento – é aquela
segundo a qual a motivação é fruto de uma construção histórico-social: a
motivação constrói-se a partir das (nossas) experiências. Digamos que os aspectos
biológicos são um sistema aberto, influenciado pelos contextos de vida, e é por
isso que pertencer a uma categoria social – género masculino ou feminino, por
exemplo – é um aspecto diferenciador.
A.R.: Que diferenças se manifestam entre
géneros no que diz respeito à motivação?
L.F.: Talvez comece pelas diferenças
intelectuais, que se têm vindo a esbater.
"O
argumento da inteligência e da competência é, por conseguinte, menos utilizado
para os sucessos das raparigas."
A.R.: Há diferenças intelectuais?
L.F.: Sim, sempre houve – por exemplo, em
três domínios, verbal, matemática e espacial – mas porque as práticas parentais
e educativas têm vindo a contribuir para o esbatimento dessas diferenças, que
(ainda) se observam, não podemos imputá-las apenas a aspectos intelectuais. São,
também, motivacionais. As diferenças podem ter que ver com o facto de a competência ser ainda muitas vezes negada
às raparigas. O desenvolvimento precoce das raparigas traduz-se em características
comportamentais – maior diligência, maior esforço, maior obediência à
autoridade do adulto – e estes factores são muitas vezes utilizados para
justificar os seus melhores resultados. O
argumento da inteligência e da competência é, por conseguinte, menos utilizado
para os sucessos das raparigas. É trabalhadora,
é esforçada, está com atenção, faz os trabalhos de casa… E a inteligência e
a competência não parecem estar presentes como explicações dominantes. Quando
as raparigas falham é estranho: porque eram diligentes, trabalhadoras e
esforçadas, se falham o argumento que sobra é o de que lhes falta inteligência
e competência. Os discursos e as mensagens que são dadas às raparigas parecem
usar os argumentos do trabalho e do esforço para justificar os sucessos, e os
argumentos da incompetência e da falta de inteligência para justificar o
fracasso. A competência é usada como factor
explicativo do insucesso mas não do sucesso. O discurso convence as raparigas
de que não são competentes ou de que, pelo menos, não podem arriscar tanto em
situações de dúvida, de adversidade e de desafio, podendo levar a opções certas
e seguras, porque mais familiares e menos arriscadas e talvez menos desafiantes.
Por consequência, as raparigas podem desenvolver
comportamentos de desistência precoce perante os desafios, podem pôr a competência
em causa e não ousar arriscar, porque há convicções ou receios de falta de
inteligência e, muitas vezes, falta de apoio do meio que também está à espera
de que as raparigas não sejam capazes. É uma profecia que se autorrealiza e
as raparigas começam por se autossabotar. Em Portugal, continuamos a observar
menor autoestima e menor sentimento de competência das raparigas em áreas do
saber tradicionalmente masculinas. Há uma descentração da tarefa e uma centração
no ego. A competência não surge como uma explicação primordial para o sucesso,
e as raparigas acabam por interiorizar os discursos que explicam os seus
(in)sucessos por causas relacionadas com a falta de competência. Ainda há
bastante a fazer no que respeita ás diferenças de género no domínio
motivacional.
"Se as mulheres assumem comportamentos considerados
masculinos do ponto de vista psicológico – assertividade, agressividade,
exposição – gera-se suspeição e há dúvida social."
A.R.: Escreveu Melanie Klein que “quem come
do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso”. Ser mulher e ser
inteligente – motivada, competente – é, ainda, socialmente incompatível? Com
que olhos vê, Luísa Faria, esta questão?
L.F.: São binómios difíceis de gerir. Se as mulheres assumem comportamentos considerados
masculinos do ponto de vista psicológico – assertividade, agressividade,
exposição – gera-se suspeição e há dúvida social. Será que mulheres em cargos de poder são igualmente femininas? Pode
haver um conjunto de expectativas de que acabarão sozinhas, de que são pouco
atractivas, enfim, comentários que não têm que ver com a sua competência. Em
Portugal, diria que a mulher desempenhou papéis masculinos mais cedo, por causa
da Guerra Colonial e da emigração maioritária dos homens, e que, portanto, as
coisas se tornaram mais matizadas. As mulheres têm qualidades de força e de liderança
na família e no trabalho que podem ter que ver com este passado, e as diferenças
motivacionais estão a esbater-se nos vários contextos socioculturais, o que nos
leva a ter alguma esperança. Em todo o caso, em situações de crise, são sempre
as mulheres as mais prejudicadas. As
mulheres são as primeiras a ser despedidas – maior taxa de desemprego, menor
taxa de escolaridade – e são as primeiras a abandonar estudos superiores para
que os filhos possam estudar. São as mulheres, como grupo de menor poder, as
primeiras a ser prejudicadas em momentos de perturbação económica e social.
Curiosamente, não por acaso, ao nível do microcrédito, os economistas
consideram mais eficaz dar dinheiro a mulheres para formarem microempresas, do
que a homens: porque as mulheres distribuem e multiplicam os recursos pelos
filhos e pela família. (…) Há ainda muito para fazer. A melhoria das condições
sociais, culturais e económicas fará toda a diferença. Aumentar o nível de
educação e de formação dos jovens fará toda a diferença.
"São as mulheres, como grupo de menor poder, as
primeiras a ser prejudicadas em momentos de perturbação económica e social."
A.R.: A mentalidade muda pela formação
superior?
L.F.: As universidades deviam ser contextos
de génese e de maturação de novas ideias, de luta pelos direitos humanos -- um
caldeirão cultural, uma oportunidade para encontrar outras etnias, outros
grupos diferentes do nosso. Isto devia provocar a alteração das mentalidades e a
maior aceitação da diferença. Todos os dias lutamos para que isto seja conseguido a despeito das dificuldades!
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