sexta-feira, 12 de maio de 2017

LUÍSA FARIA


Ana Rocha: Quem é a Luísa Faria?
Luísa Faria: Sou professora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, desde 1985, actualmente sou directora do Mestrado Integrado em Psicologia e sou Psicóloga. Realizei aqui todas as provas académicas: licenciatura, provas de aptidão pedagógica e capacidade científica (substituto do mestrado para a carreira académica), doutoramento e agregação. Tenho investigado sobretudo nas áreas da motivação e da inteligência – desde há 30 anos –, e tenho publicado a nível nacional e internacional sobretudo nesses domínios. O meu percurso foi, portanto, sempre feito aqui, na faculdade, e sempre relacionado com a Psicologia.
A.R.: Quais são as suas áreas de Actividade Científica?
L.F.: A motivação para a realização e para competência e a inteligência. Mais recentemente, também a inteligência emocional e social, sempre nas suas relações com o desempenho académico, e o desenvolvimento diferencial em função de variáveis importantes, como o género e a classe social. Por outras palavras, estudo o modo como diferentes grupos, em função de variáveis sociais – como a classe social – e variáveis psicossociais – como o género, que é biológico mas também produz diferenciação social – se desenvolvem e se relacionam com a motivação, a inteligência e o desempenho.
A.R.: Que razão para o interesse nessas áreas?
L.F.: Estas variáveis são claramente diferenciadoras: por exemplo, o facto de se nascer homem ou mulher marca e define os percursos sociais.

 "O facto de se nascer homem ou mulher marca e define os percursos sociais."

A.R.: De que forma é que marcou o percurso da professora Luísa Faria?
L.F.: As diferenças, que têm desfavorecido sempre as mulheres, preocupam-me particularmente. Há mais mulheres analfabetas. As mulheres são preteridas para cargos de poder. Há preconceitos, estereótipos e crenças erróneas acerca do género feminino. Apesar de tudo, a classe social ainda é a variável mais diferenciadora do ponto de vista social e psicológico, quer pela falta de oportunidades que as classes não dominantes – e, portanto, desfavorecidas – enfrentam, quer pela ideia de que a pobreza não se refere apenas à falta de bens económicos e de oportunidades sociais – podendo também ser encarada como uma questão de falta de competência, de falta de autoestima e de falta de valor pessoal. Estas questões marcam os percursos de vida das pessoas.
A.R.: De que forma é que o contexto de vida da professora influenciou as (suas) escolhas profissionais? Licenciada, Mestre e Doutorada, é Docente, Investigadora e Directora do Mestrado Integrado em Psicologia. Com artigos e livros publicados, tem por áreas de especialização a motivação e a inteligência.
L.F.: As áreas de especialidade aparecem como oportunidades no quadro da faculdade. É verdade que sempre fui uma aluna de excelência. Penso, por isso, que tenha que ver com características pessoais. A motivação para a realização e para a competência têm que ver comigo. Valorizo a competência, valorizo o meu percurso profissional – em que invisto – e não desisto à primeira, persisto a despeito das frustrações. Essas características foram importantes ao longo da minha vida e ao longo de todo o percurso de escolaridade.

"Falar de motivação é falar de persistência, de investimento e de esforço, de força para ultrapassar os obstáculos, para mobilizar o meio, para procurar ajuda quando é preciso e para largar aquilo que não vale a pena. A motivação também implica saber desistir."

A.R.: O que é a motivação?
L.F.: A motivação é o aspecto dinâmico da acção – é o que nos leva a lutar, a agir, a procurar motivos, a lutar por eles e a ir até ao fim. Digamos que é uma energia que nos permite continuar a trabalhar a despeito das frustrações e das dificuldades. Subjaz a ideia de que a motivação tem relações com a inteligência – sem dúvida! – porque potencia a inteligência, pois há pessoas muito inteligentes que não têm motivação e pessoas menos competentes intelectualmente que conseguem superar-se, canalizar energia e atingir objectivos desafiantes. De facto, um dos aspectos principais da motivação são os objectivos, as metas que ambicionamos ao longo dos nossos percursos. Também a capacidade para transformar esses objectivos noutros novos, e a capacidade para os reformular, para aumentar a fasquia. Lutar para fazer. Lutar para desfazer. Falar de motivação é falar de persistência, de investimento e de esforço, de força para ultrapassar os obstáculos, para mobilizar o meio, para procurar ajuda quando é preciso e para largar aquilo que não vale a pena. A motivação também implica saber desistir. Às vezes, a melhor forma de continuar motivado é desistir de um caminho que não nos leva a lado nenhum. Falar de motivação é, portanto, falar de persistência e de desistência. E, também, de sucesso e de fracasso. O fracasso é, talvez, o estimulo maior da motivação – o fracasso, as dificuldades e os desafios.
A.R.: A motivação é uma competência que nasce connosco ou que é desenvolvida?
L.F.: Há várias concepções sobre isto. A concepção dominante – e a que é mais potenciadora do desenvolvimento – é aquela segundo a qual a motivação é fruto de uma construção histórico-social: a motivação constrói-se a partir das (nossas) experiências. Digamos que os aspectos biológicos são um sistema aberto, influenciado pelos contextos de vida, e é por isso que pertencer a uma categoria social – género masculino ou feminino, por exemplo – é um aspecto diferenciador.
A.R.: Que diferenças se manifestam entre géneros no que diz respeito à motivação?
L.F.: Talvez comece pelas diferenças intelectuais, que se têm vindo a esbater.

"O argumento da inteligência e da competência é, por conseguinte, menos utilizado para os sucessos das raparigas."

A.R.: Há diferenças intelectuais?
L.F.: Sim, sempre houve – por exemplo, em três domínios, verbal, matemática e espacial – mas porque as práticas parentais e educativas têm vindo a contribuir para o esbatimento dessas diferenças, que (ainda) se observam, não podemos imputá-las apenas a aspectos intelectuais. São, também, motivacionais. As diferenças podem ter que ver com o facto de a competência ser ainda muitas vezes negada às raparigas. O desenvolvimento precoce das raparigas traduz-se em características comportamentais – maior diligência, maior esforço, maior obediência à autoridade do adulto – e estes factores são muitas vezes utilizados para justificar os seus melhores resultados. O argumento da inteligência e da competência é, por conseguinte, menos utilizado para os sucessos das raparigas. É trabalhadora, é esforçada, está com atenção, faz os trabalhos de casa… E a inteligência e a competência não parecem estar presentes como explicações dominantes. Quando as raparigas falham é estranho: porque eram diligentes, trabalhadoras e esforçadas, se falham o argumento que sobra é o de que lhes falta inteligência e competência. Os discursos e as mensagens que são dadas às raparigas parecem usar os argumentos do trabalho e do esforço para justificar os sucessos, e os argumentos da incompetência e da falta de inteligência para justificar o fracasso. A competência é usada como factor explicativo do insucesso mas não do sucesso. O discurso convence as raparigas de que não são competentes ou de que, pelo menos, não podem arriscar tanto em situações de dúvida, de adversidade e de desafio, podendo levar a opções certas e seguras, porque mais familiares e menos arriscadas e talvez menos desafiantes. Por consequência, as raparigas podem desenvolver comportamentos de desistência precoce perante os desafios, podem pôr a competência em causa e não ousar arriscar, porque há convicções ou receios de falta de inteligência e, muitas vezes, falta de apoio do meio que também está à espera de que as raparigas não sejam capazes. É uma profecia que se autorrealiza e as raparigas começam por se autossabotar. Em Portugal, continuamos a observar menor autoestima e menor sentimento de competência das raparigas em áreas do saber tradicionalmente masculinas. Há uma descentração da tarefa e uma centração no ego. A competência não surge como uma explicação primordial para o sucesso, e as raparigas acabam por interiorizar os discursos que explicam os seus (in)sucessos por causas relacionadas com a falta de competência. Ainda há bastante a fazer no que respeita ás diferenças de género no domínio motivacional.

"Se as mulheres assumem comportamentos considerados masculinos do ponto de vista psicológico – assertividade, agressividade, exposição – gera-se suspeição e há dúvida social."

A.R.: Escreveu Melanie Klein que “quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso”. Ser mulher e ser inteligente – motivada, competente – é, ainda, socialmente incompatível? Com que olhos vê, Luísa Faria, esta questão?
L.F.: São binómios difíceis de gerir. Se as mulheres assumem comportamentos considerados masculinos do ponto de vista psicológico – assertividade, agressividade, exposição – gera-se suspeição e há dúvida social. Será que mulheres em cargos de poder são igualmente femininas? Pode haver um conjunto de expectativas de que acabarão sozinhas, de que são pouco atractivas, enfim, comentários que não têm que ver com a sua competência. Em Portugal, diria que a mulher desempenhou papéis masculinos mais cedo, por causa da Guerra Colonial e da emigração maioritária dos homens, e que, portanto, as coisas se tornaram mais matizadas. As mulheres têm qualidades de força e de liderança na família e no trabalho que podem ter que ver com este passado, e as diferenças motivacionais estão a esbater-se nos vários contextos socioculturais, o que nos leva a ter alguma esperança. Em todo o caso, em situações de crise, são sempre as mulheres as mais prejudicadas. As mulheres são as primeiras a ser despedidas – maior taxa de desemprego, menor taxa de escolaridade – e são as primeiras a abandonar estudos superiores para que os filhos possam estudar. São as mulheres, como grupo de menor poder, as primeiras a ser prejudicadas em momentos de perturbação económica e social. Curiosamente, não por acaso, ao nível do microcrédito, os economistas consideram mais eficaz dar dinheiro a mulheres para formarem microempresas, do que a homens: porque as mulheres distribuem e multiplicam os recursos pelos filhos e pela família. (…) Há ainda muito para fazer. A melhoria das condições sociais, culturais e económicas fará toda a diferença. Aumentar o nível de educação e de formação dos jovens fará toda a diferença.

 "São as mulheres, como grupo de menor poder, as primeiras a ser prejudicadas em momentos de perturbação económica e social."
A.R.: A mentalidade muda pela formação superior?
L.F.: As universidades deviam ser contextos de génese e de maturação de novas ideias, de luta pelos direitos humanos -- um caldeirão cultural, uma oportunidade para encontrar outras etnias, outros grupos diferentes do nosso. Isto devia provocar a alteração das mentalidades e a maior aceitação da diferença. Todos os dias lutamos para que isto seja conseguido a despeito das dificuldades!

Sem comentários:

Enviar um comentário