Ana
Rocha: Pedro Braga e Mito: pergunto a mesma coisa ou são coisas
diferentes?
Pedro
Braga: Confundem-se um bocadinho. Comecei a trabalhar em
hotelaria há uns bons anos atrás e, entretanto, decidi que este era realmente o
caminho que queria seguir. Tirei Gestão Hoteleira – estudei no Algarve – exerci
dois anos e meio e percebi que aquilo não era, pelo menos naquela fase da minha
vida, o que me apaixonava fazer. Estava todo o dia no escritório e só quando
alguma coisa corria mal e eu tinha que sair é que vivia o ponto alto do meu
dia. Entretanto, um bocado por brincadeira, começava por cozinhar em casa e,
com amigos e por vocação, mais tarde, em restaurantes. Queria perceber se era
realmente aquilo que devia fazer com a minha vida. Foi uma experiência
interessantíssima, percebi que aquilo era muito bom, mas que ainda me faltava
muito. Então, meti-me num avião e fui para Londres. Tirei o curso de cozinha e
pastelaria da Cordon Bleu. Estive aproximadamente um ano lá, a trabalhar
depois de terminar o curso, que tem a duração de nove meses intensivos.
In-ten-si-vos. De manhã à noite, de segunda a sábado. Um curso incrível.
Começa-se logo com o rigor, com a disciplina, com a base em francês, a
hierarquia, a brigada de cozinha, logo desde a primeira aula. (…) Depois disso,
estive a trabalhar no restaurante Koffmann’s e aproveitei, obviamente, para
experimentar uma ou outra cozinha em Londres. Londres é uma cidade incrível,
tem de tudo, e isso reflecte-se aqui, no Mito: há pratos que nos levam até à
Índia, mas eu nunca fui à Índia. Fui muitas vezes… De metro! O curso também
tinha essa vantagem, a de ter pessoas do mundo inteiro. Convivi com pessoas da
Índia, vivi com dois chineses da Indonésia, com um português e com um inglês.
(…) O curso tinha de tudo: sul-africanos, ingleses, chineses, japonenses,
holandeses, e acabava por ser interessante, porque nos juntávamos em casa de um
e decidíamos que naquele dia íamos comer arroz de frango, depois um caril,
depois um churrasco… Isso vem connosco.
A.R.: Tudo
pessoas que cozinhavam bem?
P.B.: Sim,
de um modo geral, porque também há quem vá sem saber e acabe por aprender. Falo
de uma mulher com 10 empregados em casa. (…) Cozinhava, mas tinha quem lhe
picasse a cebola. E confesso que, na altura, foi uma surpresa, porque pensei
que o curso era exclusivo para os que almejam tornar-se cozinheiros. A verdade
é que há um pouco de tudo. Igualmente verdade é também que essas pessoas são,
normalmente, pessoas muito dedicadas: as famílias que lhes dão origem são
daquela dimensão porque houve alguém, há muitos anos atrás, que começou do
zero. Não tomam nada por garantido: saboreiam a vida, mas não tomam nada por
garantido. E isto, pessoalmente, tem uma influência muito grande na nossa forma
de ver as coisas: eu tinha meia dúzia de pessoas, na minha turma, que não
precisavam de estar ali e que nunca vão trabalhar na vida, provavelmente, a
sério e/ou por necessidade, mas que, no entanto, fazem-no. (…) Aquela mulher,
nove meses depois, esteve a trabalhar dois meses num restaurante com duas
estrelas Michelin. Em Londres. É violento. Uma pessoa pensa, “esta mulher
que se via à rasca para descascar uma batata…”. Claro que, depois, há
sempre uns que cozinham melhor do que os outros, e cada um tem o seu registo.
No final, acho que não há bons e maus cozinheiros: há cozinheiros que querem
cozinhar melhor em casa. E é legítimo. Quem me dera cozinhar mais em casa.
A.R.: Quem
cozinha em casa?
P.B.: A
minha mulher. Às vezes, ao Domingo, sou eu. Há um prato da casa – o Arroz de
Tamboril – que é o jantar de Domingo. Quando o meu cunhado cá veio e lhe pus o
arroz na mesa, pela primeira vez, virou-se para a mãe e disse: “Estás a ver?
Este é o arroz de Domingo!”. Risos. Por isso é que digo, às vezes, um
bocadinho na brincadeira, que o Mito e o Pedro Braga se confundem.
A.R.: O Mito
já existia, no imaginário, há (muito) mais que três meses. O que surge, de
novo, é o espaço...
P.B.: Este
espaço agradou-me pela localização e, estruturalmente, está quase igual.
Algumas alterações foram feitas – a título de exemplo, a remodelação da cozinha
–, mas foi um negócio que correu bem. Foi interessante a experiência de pensar
isto tudo, porque tudo aqui dentro foi pensado com um objectivo, e fui eu que o
pensei. Da primeira vez que tentei expor a ideia aos meus amigos responderam-me
que isto não estava definido. Insisti. “Está!, essa é a definição”.
Disseram-me que era completamente maluco, mas umas semanas depois acreditavam
nisto mais do que eu.
A.R.: Qual é
o conceito do Mito?
P.B.: O
objectivo não foi o de inventar nada novo, até porque acredito pouco nisso.
Neste momento, apetecia-me algo que me fizesse sentir bem. O conceito do Mito
não está só na comida. É um modo de estar. Uma atitude. O Mito é um sítio onde
se partilha um momento à mesa e em que a comida traz alguns sabores novos e
algumas identidades de outros países também: as pessoas reconhecem o Vietnam
quando comem algo que podia quase ser um bolinho de bacalhau, por
exemplo. Para além disso, temos os cocktail de autor para iniciar a
refeição ou até mesmo acompanha-la – isso foi pensado, menos açúcar, menos
álcool essencialmente –, e as bebidas que escolhemos são elas também mais
delicadas. O serviço é próximo do cliente, sem floreados, é um restaurante para
amigos com amigos, é assim que eu quero que o nosso cliente seja recebido: como
um amigo a quem vamos dar um momento de prazer.
A.R.: Como o
arroz de Tamboril?
P.B.: Precisamente!,
não é à toa que está na carta. Nunca o tinha feito num restaurante mas como-o,
em casa, há muito tempo. As pessoas, quando vão a um restaurante, devem estar
relaxadas, não devem – e não têm! – que estar tensas com a roupa certa, com o
relógio certo... Aqui, a mesa é toda a preto e branco e isso foi pensado, não
foi só porque é bonito: não queremos impor nada. A mesa – e o restaurante – são
telas vazias. Depois, os pratos, são às cores, mas o costeletão e o linguado,
por exemplo, vêm em travessas de inox. Funciona! A preocupação é a de fazer com
que as pessoas se sintam confortáveis e a de que a comida seja boa. Não
perdemos muito tempo nos empratamentos, ainda que também não se atirem coisas
para o prato. Não há elementos decorativos e os pratos não têm mais do que
três, quatro coisas no máximo.
A.R.: Porquê
Mito?
P.B.: Tenho
um grupo de amigos de secundário que, quando entrou para a faculdade – a maior
parte para saúde – entrou todo para locais diferentes: Algarve, Lisboa, Açores
(…). Desde então, há sempre alguém que está fora mas o grupo continua existir.
Dizemos que é o mito: no whatsapp, esse grupo de amigos chama-se mito;
no meu casamento, a mesa chamava-se mito. Curiosamente, da primeira vez que me
vi decidido a procurar um nome, estava com alguns desses meus amigos e um deles
disse “É Mito!”. Aquilo ficou. Combina com o conceito também. Quem entra no
restaurante não recebe carta de comida mas sim de cocktails. É Mito! Talvez
sejam coisas que só eu vejo… Mas acabam por fazer sentido: a carta não tem uma
linha certa, embora haja um fio condutor. A única coisa que garanto é que cada
prato é feito com dedicação e com verdade. O objectivo é que a carta seja tão
verdadeira quanto isso.
A.R.: Porquê
Rabanada?
P.B.: Identidade!
Não abri um restaurante para turistas: abri um restaurante para o Porto. Tem
que fazer sentido o ingrediente e o produto na carta; tem que haver identidade.
Por isso é que há bacalhau, por isso é que há polvo, por isso é que há
linguado, arroz de tamboril… Por isso é que há uma rabanada, e nós no Porto
gostamos muito de rabanadas, só decidi fazer uma diferente. A carta é dinâmica
e tem que haver novidade. Vai haver novidade. O Arroz de Tamboril é que acho
que já não posso retirar, muito menos a rabanada!
A.R.: O
horário também vai ser dinâmico?
P.B.: O
restaurante tem tido uma movimentação de jantar muito interessante e, neste
momento, estou concentrado em aumentar o horário à noite – por isso é que
abrimos à segunda-feira. Há muito de esfera pessoal aqui implicado, porque
nasci num berço de ciência – o meu pai é engenheiro e a minha mãe é médica – e
acredito que temos que dar os passos todos. A médio-longo prazo o objectivo é
que a casa esteja sempre aberta: havendo procura, há sempre oferta, pelo menos
da minha parte. No imediato, a prioridade é mesmo a de solidificar a
casa e a consistência em todos os que nos visitam. Abrimos ao almoço desde o
mês passado. Fechamos apenas ao Domingo.
A.R.: O
mercado está a ficar saturado?
P.B.: O
mercado não está a ficar saturado, mas tem que ser alimentado. Para se ter um
restaurante não tem que se ter formação em gestão hoteleira, nem ser cozinheiro
– não acho – mas há pessoas que fazem isto como hobby, porque é giro.
Há, também, restaurantes que vendem muita imagem e pouca comida.
A.R.: O
consumidor sabe distinguir?
P.B.: O
consumidor está a mudar, não agora, mas de há dez anos para cá. Viaja-se mais,
provam-se outras realidades e começa-se a ter noção do valor do dinheiro num
restaurante. Isto tem que acontecer nos restaurantes. E acho que cada vez mais
há restaurantes que abrem e que são restaurantes: com conceitos pensados, com
empresários de restauração, com chefes de cozinha, chefes de sala (…).
A.R.: Financeiramente,
ainda vale o velho conselho: “se queres ter dinheiro, abre um restaurante”?
P.B.: Não!...
Estão enganados! (Risos) Não quer dizer que não dê, mas não é amanhã e isto tem
custos, tem… Muita coisa. Recentemente fechou um restaurante cujos
proprietários fizeram uma morte digna porque disseram, à sua morte, uma frase
muito bonita: “há uma altura na vida em que as pessoas têm que fazer contas e
tem que valer a pena”. Por outras palavras, não quer dizer que não estivesse a
correr bem, mas o lucro que dá tem que justificar o trabalho que se está a
fazer. Esta é uma decisão muito fria e muito difícil de tomar, na minha
opinião. Não é fácil, e isso vê-se pela quantidade de restaurantes que abriram
e fecharam, no Porto, ao longo dos últimos três anos. Não é para qualquer um,
basicamente, e dá muito trabalho... Mas é uma vida incrível.
A.R.: Frequenta
restaurantes no Porto?
P.B.: Sempre
que posso. Frequento os que são dos meus amigos e restaurantes de pessoas que
não conheço. Não porque tenho um restaurante mas porque gosto de comer. E
quando como alguma coisa de que gosto… Torno-me no melhor cliente do mundo!
Acho que, no Porto, actualmente, há uma série de coisas a ser bem feitas.
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