Ana Rocha: Quem é o Ângelo Fernandes?
Ângelo Fernandes: Começamos pelo mais recente, que é o mais fácil. Cofundei a Quebrar o Silêncio e envolvo-me, de há uns tempos para cá, nas questões da violência sexual – contra homens e rapazes, especificamente – mas também na prevenção em geral, contra homens e mulheres, rapazes e raparigas. O meu foco e o meu trabalho acabam (quase) por me definir, em termos de identidade, portanto, é o passar do dia a pensar em formas de chegar e de humanizar, perante o público, questões da violência sexual: como é que as pessoas podem ser mais sensíveis e receptivas ao acolhimento e à partilha das vítimas/ sobreviventes. Preocupo-me também com a igualdade de oportunidades e de direitos – que algumas pessoas entendem como igualdade de género e outras como feminismos embora, simplificando os caminhos, estejamos a falar da mesma coisa com diferentes terminologias.
Ângelo Fernandes: Começamos pelo mais recente, que é o mais fácil. Cofundei a Quebrar o Silêncio e envolvo-me, de há uns tempos para cá, nas questões da violência sexual – contra homens e rapazes, especificamente – mas também na prevenção em geral, contra homens e mulheres, rapazes e raparigas. O meu foco e o meu trabalho acabam (quase) por me definir, em termos de identidade, portanto, é o passar do dia a pensar em formas de chegar e de humanizar, perante o público, questões da violência sexual: como é que as pessoas podem ser mais sensíveis e receptivas ao acolhimento e à partilha das vítimas/ sobreviventes. Preocupo-me também com a igualdade de oportunidades e de direitos – que algumas pessoas entendem como igualdade de género e outras como feminismos embora, simplificando os caminhos, estejamos a falar da mesma coisa com diferentes terminologias.
A.R.: Porque é que cofundou a Quebrar o Silêncio?
A.F.: Não havia, em Portugal, uma associação que prestasse um serviço
especializado a homens vítimas/ sobreviventes de violência sexual. Há outras
respostas de apoio, mas especificamente para homens não existia. Isto era
fundamental; que houvesse um espaço em que os homens se sentissem seguros a
procurar apoio e a fazer a sua partilha. Na Quebrar o Silêncio, é isso que
acontece: a maioria dos homens procura
apoio pela primeira vez e diz que o faz pela primeira vez porque sente que tem
agora um sítio onde o pode fazer com segurança – sabem que a partilha vai
ser ouvida, bem recebida, validada.
A.R.: Porque é que os homens sabem agora que vão ser ouvidos?
A.F.: Na nossa comunicação é claro que este é o nosso foco. Por outro lado, há vários estudos que
comprovam – e a nossa experiência também o diz – que quando a maioria dos
homens faz uma partilha, essa não é bem recebida ou é desvalorizada.
A.R.: Por norma, com quem partilham?
A.F.: Amigos, família ou, por exemplo, com profissionais de
saúde. Em média, um homem demora cerca
de 26 anos a procurar apoio – são 26 anos a sofrer em silêncio, 26 anos a ser
silenciado – e, quando essa partilha não é bem recebida, o silêncio prolonga-se
entre mais 3 a 5 anos, porque se validam crenças internas. Desconstruir e
desmistificar a violência sexual permite contribuir para se reduzir o tempo de
procura de apoio para 24, 23, 22 anos (…), e por aí fora. A nossa comunicação
reforça exactamente isso: os homens vão ser ouvidos, sem juízos de valor, porque
ouvimos a história como é e validamos a sua existência.
A.R.: Como comunicam?
A.F.: A nossa comunicação tem três vertentes diferentes. Primeira
e principal, comunicamos para os homens vítimas/ sobreviventes de violência
sexual – sempre. Esta comunicação relaciona-se com as consequências, com as estratégias
de sobrevivência, com o empoderamento da vítima/sobrevivente e com a
disponibilidade para os ouvir e receber. Segunda, comunicamos também para as pessoas
que possam ter contacto com homens vítimas/sobreviventes de violência sexual.
Terceira, prevenção, preocupamo-nos com a violência sexual infantil e trabalhamos
para a prevenir – há várias dimensões a partir das quais trabalhamos essa
prevenção –, porque a maioria dos casos de violência sexual contra homens ocorre
na infância, apesar de também acontecer na idade adulta. Por último, o uso da
minha história pessoal. Eu próprio fui
vítima de violência sexual e o que se passou comigo, passou-se com muitos
homens: passa-se com 1 em cada 6 homens. Não é tarde de mais. Há sempre alguma
coisa que possamos a fazer.
A.R.: Como seria o novo homem num mundo de equidade? Falamos de
um novo homem?
A.F.: Não, não existe um novo homem: esse homem já existe mas não
é reconhecido e/ou valorizado, por causa da reprodução dos estereótipos de género.
Defendemos que o homem pode chorar sem
que isso afecte a sua masculinidade e a forma como os outros vêem a sua
masculinidade. Defendemos que o homem pode ser um homem cuidador, não tem que
ser necessariamente agressivo ou violento. E defendemos que a educação dos
rapazes pela violência e pela agressão tem que ser desmistificada, porque esse
não precisa de ser o caminho a seguir, há outros. Não estamos aqui para
doutrinar – na presunção de indicar o caminho certo –, mas estamos aqui para
fomentar a reflexão de que realmente existem diferentes masculinidades e estamos
aqui para apelar às masculinidades cuidadoras e afectivas.
A.R.: Nesse caso, podemos falar de masculinidade positiva?
A.F.: Não sei se existem masculinidades positivas e negativas.
Acho que é, se calhar, uma forma binária de apresentar as coisas. Existem
características – independentemente do sexo e do género – que são positivas e
negativas. O que tentamos dizer é que os
homens têm em si a capacidade de cuidar – cuidar é cuidar de si próprio e de
quem se gosta – e têm, também, outras qualidades. Vamos enaltecer essas
qualidades e reforçar que o melhor cuidador do outro é o que cuida de si
também. Não é por acaso os homens procuram menos os médicos e envolvem-se mais
em comportamentos autodestrutivos (ainda que, por vezes, de forma meio inconsciente).
Podemos falar de masculinidades cuidadoras sem que isso afecte a masculinidade
tradicional.
A.R.: O que é a masculinidade?
A.F.: Cada um tem a sua própria definição e cabe a cada um
decidir as características que gosta de rever em si.
A.R.: A Quebrar o Silêncio luta para que se retirem os rótulos
dos homens?
A.F.: Eu não sei se é retirar os rótulos. É questionar as
coisas. Existem muitos obstáculos para
os homens vítimas/sobreviventes de violência sexual a procurar apoio, a
partilhar histórias. Um obstáculo prende-se com as consequências do abuso – os
fortes sentimentos de vergonha, a forte culpabilização e outras consequências
– e o outro com a resistência em
procurar apoio. As ideias estereotipadas como, por exemplo, “homem que é homem
tem de resolver os problemas sozinho, não pode procurar apoio, falar de
sentimentos” continuam enraizadas e muito presentes. Isso é um obstáculo na
procura de apoio.
A.R.: Do ponto de vista legislativo, o que é que ainda falta
fazer?
A.F.: Falta fazer algumas coisas, nomeadamente, instituir um Código
Penal que respeite o tempo da vítima/sobrevivente. Se os homens demoram, em
média, cerca de 26 anos a procurar apoio – em média, as mulheres demoram cerca
de 12 anos –, 6 meses não é suficiente. Creio que Espanha está agora a avançar
com a ideia de os crimes sexuais não prescreverem. Isso faz sentido e Portugal
precisava de se legislar nesse sentido. A lei não respeita o tempo da vítima.
A.R.: Os crimes não são equiparáveis porque nos crimes de
violência sexual, frequentemente, não há provas.
A.F.: Há provas, quando a queixa é feita com a perícia da
medicina legal, há provas. É difícil, depois de 20 anos, constituir prova.
A.R.: O movimento feminista também ajuda na luta da Quebrar o Silêncio?
A.F.: Claro que ajuda. Não há dúvidas. Nós só estamos a “discutir” a violência sexual contra homens porque as
mulheres feministas há décadas que lutam pela inclusão destes temas – violência
sexual, violência de género, igualdade de género – na esfera pública e
política. Foram elas que trouxeram
estes temas e que estimularam a discussão e a revisão, por exemplo, do Código Penal
para estes crimes. Quando as mulheres feministas trazem estes temas de
violência sexual e começam a mudar a sociedade, nós fazemos o nosso trabalho
depois desse trabalho ter sido consolidado. Obviamente que estas questões
nunca estão definitivamente consolidadas – por exemplo, nos Estados Unidos as pessoas
transsexuais estão a perder os direitos; no Brasil, veremos possivelmente
também um retrocesso; - mas nós temos um contexto favorável e podemos, por isso,
agora, dar o nosso contributo.
André Couceiro: Se esses movimentos feministas não
tivessem aberto o caminho primeiro, o que seria diferente, como começaria a
Quebrar o Silêncio este trabalho?
A.F.: Não faço ideia. São décadas de uma luta incessante, constante,
difícil, diária. Não passei por essa luta e entro nesta caminhada bem depois
dessa conquista. Não consigo responder. Certamente, não colocaríamos o homem
como vítima.
A.R.: A população
portuguesa está, agora, preparada?
A.F.: Não sei, penso que ainda não. Há pessoas mais sensíveis e outras
menos sensíveis, mas a maioria não pensou sobre estas questões antes e é a
primeira vez que o está a fazer. É natural que, quando se confrontem pela
primeira vez com estas questões, não estejam preparadas para o fazer. É por
isso que é importante criarmos vocabulário e promovermos a literacia – como é
caso, por exemplo, da distinção entre vítima e sobrevivente. É-se vítima é na altura do abuso, do crime.
Sobrevivente, quando o abuso é uma experiência passada. Sobreviver diariamente
com as consequências do abuso pode ser uma experiência devastadora: há homens
que cometem suicídio porque não foram capazes de lidar com a experiência;
outros, acabam por encontrar ou desenvolver estratégias desadequadas. Utilizar
o vocábulo sobrevivente é, também, uma forma de os empoderar.
A.R.: A vítima de abuso sexual reconhece-se sempre como vítima
de abuso sexual?
A.F.: Não necessariamente. Há situações em que a vítima identifica
no imediato ou depois que determinada experiência foi uma experiência
traumática e há outras situações em que não. À maior parte dos abusos, antecede
um processo de sedução e manipulação para com a vítima, pelo que há homens e
mulheres foram levados a acreditar que seduziram, consentiram, aceitaram. Este
processo acaba por fixar a narrativa na própria vítima, que ao acreditar-se
culpada e responsável pelo abuso, paralisa.
Sejamos claros. A vítima não compactua, a vítima é seduzida e manipulada
para que pense que está a compactuar.
A.R.: Uma pergunta provocadora. A vítima pode sentir
prazer no momento da violação?
A.F.: Voltamos à questão da manipulação. Por norma o abusador
não começa a relação com a vítima com o abuso sexual propriamente dito. É
alguém que, normalmente, é familiar ou próximo da vítima e que se aproxima como
uma pessoa de confiança, uma pessoa de referência, uma pessoa amiga, para que a
vítima não percepcione essa pessoa como uma ameaça ou um perigo. Muitas vezes,
neste caminho em que vai conquistando a atenção, a confiança e o afecto da
vítima, também os conquista das pessoas adultas à volta, para garantir
imunidade. Neste processo, é comum também que os abusadores criem momentos
isolados com a vítima para poderem dessensibilizá-la aos temas sexuais e ao
toque, em situações pontuais. As conversas, aparentemente inofensivas, trazem
um teor sexual à conversa que posteriormente permite o avanço. Nas crianças que
começam a experienciar a sua sexualidade, é frequente que os abusadores
utilizem a curiosidade delas a seu favor. Um toque pode ser um estímulo sexual.
Há casos de rapazes que, durante o abuso sexual, tiveram erecções, orgasmos e
até ejacularam e essas questões silenciam, mas a erecção e o orgasmo não
significam que aquela não foi uma experiência traumática ou que o abuso tenha
sido consentido. Um menor não pode nunca
dar consentimento, o abusador (adulto) é sempre o responsável pelo abuso.
A.R.: Quem é que abusa sexualmente homens?
A.F.: Outros homens, maioritariamente heterossexuais. A ideia de que a violência sexual só
acontece em prisões ou entre homens homossexuais é um mito, e esse mito precisa
de ser desconstruído, também. Por vezes, na forma como se fala de violência
sexual nota-se uma sexualização da experiência. É preciso trabalhar no sentido que a violência sexual não é sobre sexo,
é sobre poder. A violência sexual não é
sexo, é violência. É crime.
A.R.: O Homem Promotor da Igualdade, o que devemos saber sobre o
evento?
A.F.: Esta é a segunda edição do encontro e, este ano,
adicionámos um terceiro dia com workshops.
O encontro “O Homem Promotor da Igualdade – Homens e Mulheres lado a lado pela Igualdadede Género”, acontece nos dias 15, 16 e 17 de Novembro, no ISCTE-IUL – Auditório
J. J. Laginha [Edifício 1]. Além do tema central, que se foca na promoção de
masculinidades cuidadoras e transformativas e participação do homem na
igualdade de género, para a edição 2018 o encontro terá como eixos centrais a
interseccionalidade e os direitos das pessoas LGBTI, e com o apoio da
Secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Dr.ª Rosa Monteiro e do BNP
Paribas, contando ainda com várias presenças internacionais como Gary Barker – EUA
–, Duncan Craig – UK –, Asdis Olafsdottir – Bélgica – e Hjálmar Sigmarsson – Islândia.
A participação no encontro é gratuita e deve ser feita através do site http://promotoresdaigualdade.pt, onde
também podem encontrar o programa.
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