“Há
pessoas mais miseráveis que eu, mas eu não digo isso a ninguém. Na
verdade, somos todos miseráveis.”
Ana Rocha: Mariana a miserável é ilustradora. Esclarece-nos:
o que é ilustração?
Mariana
a miserável: A Ilustração
é (só) imagem: de textos livres, de jornais, de revistas – esse é, pelo menos,
o conceito mais tradicional de ilustração. Hoje em dia, no entanto, não há tanto
mercado editorial e um ilustrador pode muitas outras coisas. Eu, em particular,
aproximo-me da ilustração de autor, que é uma expressão da ilustração associada
ao meio artístico. Ilustro palavras e conceitos meus e exponho-os como arte. Há
quem defenda que a ilustração em galeria não é ilustração – é só arte. Eu não
gosto de teorizar. Gosto de experimentar coisas novas dentro daquilo que faço. Ilustrei,
por exemplo, um livro de cartas de amor para uma editora portuguesa e, no mês
seguinte, fiz a transposição de uma dessas ilustrações do livro cartas de amor
para um mural em São Miguel, nos Açores. Aqui se percebe bem os vários
territórios que a ilustração pode ocupar.
A.R.: Podemos, então, dizer que as competências avaliadas no mundo académico não são as competências que se avaliam no mundo profissional?
A.R.: Podemos, então, dizer que as competências avaliadas no mundo académico não são as competências que se avaliam no mundo profissional?
M.M.: Não, de todo. É importante, muito
importante que a faças, mas não chega: é preciso algo mais. Eu senti muito a
fase de acabar o curso e de não saber para onde ir, como começar, o que fazer.
Não fazia a mínima ideia e, ainda hoje, vejo imensa gente nesta situação, que é
pavorosa. É medo. Medo puro. Na altura, decidi não pensar, ir viver para Porto,
fazer aquilo de que gosto e ser feliz. Resultou. Comecei por trabalhar 8h por
dia, em casa, e ainda hoje a minha vida ainda é assim. Sou eu que faço o meu horário.
Tem as suas vantagens, mas é importante que se aprenda a gerir o tempo – o
pessoal e o de trabalho – porque a ilustração é uma profissão solitária. Estás constantemente sozinha a
trabalhar, e é solitário porque se não tiveres controlo sobre o que estás a
fazer consegues ficar em casa, por exemplo, uma semana inteira sem falar com
ninguém. Já me aconteceu. Estás completamente sozinha. Estás tão dentro do teu
trabalho – e precisas do tempo – que ficas completamente isolada. Eu comecei a
limitar-me porque houve alturas em que aceitava o trabalho todo e não dormia.
A.R.: Sentes então que, durante o processo criativo, precisas de te isolar?
A.R.: Sentes então que, durante o processo criativo, precisas de te isolar?
M.M.: Sim. Já senti isso e já senti o contrário. Antes das exposições
eu passo por um processo que apelidei de clausura. A clausura consiste em,
antecipadamente, passar pelo supermercado para comprar mantimentos e ficar uma
semana em casa, sozinha. Para mim já é uma coisa natural. Aviso os meus amigos
e a minha família de que vou entrar em clausura, “é agora!”, e eles já
sabem que está tudo bem. Faz parte do meu processo criativo. (In)felizmente,
não tenho tempo para estar, tranquilamente, em casa a ouvir música clássica e a
desenhar apenas quando me apetece porque tenho muito trabalho comercial. E
exposições para fazer. Mas também
sinto o contrário. Sinto que já estou fechada em casa há mil anos, sinto que já
não vejo ninguém há muito tempo e que preciso de ir trabalhar, por exemplo,
para um café. Já tive imensas ideias em cafés. Esse é um aspecto muito bom da
minha profissão: tenho a liberdade de gerir o meu tempo e de decidir para onde
é que vou. A liberdade para gerir o meu horário faz
parte do processo – eu não tenho um processo fixo – e a intuição é, neste
aspecto, muito importante: organizo-me de acordo com aquilo que sinto.
A.R.: Podemos considerar-te, portanto, uma
artista multidisciplinar.
M.M.: Sim. Se procurares pelos meus
trabalhos, desde os mais antigos, consegues aperceber-te períodos diferentes. Tenho
um período em que só pinto com tinta-da-china; tenho um período cinzento em que
só trabalho com grafite; tenho um período em que começo por inserir cor – mas
só o pormenor; e, entretanto, entretanto descubro que quero cor e começo a
trabalhar com cor.
A.R.: Consideras-te uma contadora de estórias?
M.M.: Sim!, aliás, eu acho que um dos papéis
dos ilustradores é precisamente o de contar estórias: suas ou de outras
pessoas. Quando um escritor me pede para ilustrar um livro é a minha visão, a
minha interpretação do texto, que eu vou ilustrar. E essa é a finalidade da ilustração:
a de passar uma mensagem muito clara através daquilo que estou a desenhar. Aqui
reside a diferença entre a ilustração e a arte. O ilustrador preocupa-se com
uma finalidade muito específica durante o processo de produção.
A.R.: Os teus trabalhos partilham todos o
mesmo conceito?
M.M.: O traço é meu, não sei fazer outro. Quando
me procuram, para algum trabalho, procuram-me pelo que faço enquanto miserável.
Vão de encontro às minhas limitações. E eu também me adapto às limitações que
requer o trabalho de cada cliente: adapto a minha linguagem à técnica que acho
adequada para o processo de produção do objecto final.
A.R.: Fazes intervenção em rua?
M.M.: Eu só fiz quatro vezes intervenção em
rua. A primeira foi nos Açores, a segunda foi no Porto (com o Júlio Dobeth, André
da Loba, Mariana Rio e Nicolau), a terceira foi em Viseu e a quarta, este ano,
no Algarve.
A.R.: De que modo é que a formação dos teus
pais te influenciou?
M.M.: Os meus pais são muito culturais. Eu
tinha 14 anos quando fui ver a minha primeira exposição (à qual foi o meu pai
que me levou). Lembro-me de estar na exposição e de pensar “uau, nem sabia que isto existia e que podia ser um emprego!”. Mas,
nessa idade, não se pensava muito. Eu sabia que queria ir para artes, e isso
bastava-me.
A.R.: Desde pequenina?
M.M.: Quando era pequenina queria ser
florista. Queria ser uma pessoa normal. Não queria dar muito nas vistas... Mas a
coisa não se orientou por aí
A.R.: Eu li uma entrevista em que falavas sobre
a exposição Lonely Hearts. Li, também, algo a respeito do Tinder…
Hum, creio ter-te lido dizer que chegaste a conclusões dolorosas.
M.M.: As pessoas são muito sozinhas. É muito difícil encontrar
alguém. E é muito difícil encontrar a pessoa certa no momento certo. Às vezes
encontras a pessoa certa mas não está no momento certo para ti. Torna-se
cada vez mais difícil encontrar alguém e quanto mais avanças na idade… Pior. Aos
30 anos – e eu sempre lidei bem com a idade, sou uma velhota, vejo telenovelas!
– os teus amigos começam a casar e a ter filhos, os teus ex-namorados também, e
é só… Estranho. Tu começas a pensar: “Isso quer dizer que…”. E, de repente, começas
a estar rodeado de pessoas que estão resolvidas… E tu não estás. Onde raio vais
conhecer alguém?! Inscreves-te no Tinder.
O Tinder é só… Eu acredito que possam
acontecer milagres!, mas aquilo é horror. Então, como dizia, eu inscrevi-me no Tinder por causa da exposição e, por
causa da exposição também, participei em Speed
Dating.
A.R.: Explicavas às pessoas qual era o teu
objectivo?
M.M.: Sim, foi engraçado. O Speed
Dating foi ainda mais engraçado, porque eu senti que os homens desabafaram
mesmo comigo, e que deixaram de ter segundas intenções e eram pessoas normais. Eram
homens e mulheres normais. No Tinder,
por outro lado, às vezes não me era dada a possibilidade: enviavam-me logo fotos
que… Essa parte foi engraçada. E foi boa para a minha exposição, porque me deu material
para trabalhar. O Speed Dating foi bonito. As pessoas
perceberam mesmo o que eu estava lá a fazer. Desabafaram comigo. Vi homens com
trinta e muitos anos quase a chorar. As pessoas
estão todas muito sozinhas, mas não se fala nisso: está sempre tudo bem – somos
todos independentes e profissionalmente realizados. Só que não… Estamos todos muito
mal. Fazemos parte de uma sociedade em que não se valoriza o amor. O amor é
um conceito… Mais vale pintar, que o amor dá
trabalho. O amor dá trabalho!
A.R.: A Mariana Santos e a Mariana a
miserável são, portanto, a mesma pessoa?
M.M.: No início eu acreditava que eram
pessoas diferentes mas, com o tempo, apercebi-me de que a miserável era, de
facto, eu. Grande parte do meu trabalho – exposições e fanzines – são sobre
mim, sobre a minha vida. Uma dessas fanzines é, aliás, sobre o pior ano da
minha vida. A Mariana Santos e a Mariana a miserável são, as duas, a mesma
pessoa. Talvez fosse mais interessante dizer que era outra pessoa e que está
tudo bem… Mas não.
A.R.: Se a criança que eras com seis anos
olhasse, agora, para a mulher em que te tornaste, como pensas que se sentiria?
M.M.: Eu nasci numa época em que estava tudo bem. O conceito de
crise não existia. A crise começou quando eu entrei para o mercado de trabalho.
Foi um timming óptimo: logo agora!,
que eu precisava de arranjar um trabalho. Com seis anos pensava, com certeza, que
aos 30 já teria filhos, casa, carro e marido. Não aconteceu.
A.R.: Aconteceu a miserável. Se, há sete anos, contasses às
pessoas sobre o lugar em que hoje ias estar… Acreditavam?
M.M.: O meu pai - que é apreciador de arte - torceu o nariz! Ele gosta
de outro tipo de trabalhos e não entendia o meu. Então, nem eu acreditava.
Aliás, quando dei por terminada a minha formação no ensino superior, enviei um
pequeno portefólio para várias editoras e… Óbvio que não: óbvio que não
consegui nada. Consegues perceber o meu pretensiosismo na altura? Hoje o meu
trabalho prima por excluir essa inocência. Consigo situar-me muito melhor. Reconheço isso nas pessoas mais novas,
mas acho que não há mal nenhum porque é, na verdade, uma defesa e quando todos
te dizem que o teu trabalho é uma merda... Tu precisas dessa ousadia para
continuar.
A.R.: O que é que te distingue de outros
ilustradores? O que é que tu tens que os outros não têm?
M.M.: Eu acho que tem que ver com
circunstâncias. Primeiro, houve um pai que me dava dinheiro – mesmo que não
acreditasse muito nos meus projectos. Depois, eu não tenho muito jeito para
mais coisas. O que é que ia fazer? Ainda entreguei um curriculum vitae numa florista, mas não resultou. Trabalhei imenso. Há pessoas que
pensam que sou mais velha do que sou, na realidade, porque tenho muito
trabalho. Mas não, eu só trabalho muito: é só isso.
A.R.: Que novidade nos podes contar?
M.M.: Para o ano vou fundar um clube. O Clube
dos Miseráveis.
A.R.: Até lá, por onde é que as pessoas te podem seguir?
A.R.: Até lá, por onde é que as pessoas te podem seguir?
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